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O elogio da delação

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Por Paulo Afonso Linhares, Professor da UERN

 

Antigo leitor voraz de textos historiográficos foi inevitável a minha predileção pelas leituras da história dos movimentos nativistas brasileiros, com foco notadamente para o mais importante destes: a Conjuração Mineira, de 1789, o mesmo ano da Revolução Francesa, ambas ocorridas sob o forte influxo do ideário construído no Século das Luzes (movimento cultural das elites intelectuais europeias ocorrido no século XVIII, embora originariamente tenha ocorrido no período compreendido entre os anos de 1650 e 1700). A palavra “conjuração” (no sentido de “conspiração contra uma autoridade estabelecida; conjura”, que lhe dá o Aurélio) é preferível à “inconfidência” que, absurdamente, é mantida nos livros escolares. Ora, inconfidência é no sentido da “falta de fidelidade para com alguém, particularmente para com o soberano ou o Estado”, segundo verbete do mesmo dicionário Aurélio.

No resumo dessa história, segundo a Wikipédia, “[…] na segunda metade do século XVIII a Coroa portuguesa intensificou o seu controle fiscal sobre a sua colônia na América do Sul, proibindo, em 1785, as atividades fabris e artesanais na Colônia e taxando severamente os produtos vindos da Metrópole”. Essa situação agravou-se com a nomeação, para o governo da capitania de Minas Gerais , em 1783, de D. Luís da Cunha Meneses, pessoa de índole despótica e violenta, a quem foi dado o encargo de promover a cobrança da “derrama”, uma severa taxação bem aproximada de uma confisco em que os cidadãos de maiores posses eram obrigados a completar o que faltasse da cota imposta por lei de 100 arrobas de ouro (1.500 kg) anuais, na hipótese de não ser atingida. A elite colonial mineira passou a conspirar, objetivando proclamar a república em Minas Gerais, que se libertaria do jugo colonial. Os conspiradores, entre os quais os poetas Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manoel da Costa, além do Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foram delatados por Joaquim Silvério dos Reis, cuja delação objetivava obter o perdão para suas dívidas com a Coroa portuguesa. O resto dessa história foi a tragédia por demais conhecida e que, embora não percebamos, projetou uma onda de frustração que até hoje prostra esta nação.

Por isto a palavra “delação”, posto que adornada até do adjetivo “premiada”, me soa como algo feio, malcheiroso, de uma profunda indignidade. A delação tem uma longa história no direito luso-brasileiro. Presente nas Ordenações Filipinas, ingressou no direito brasileiro em 1603 e foi dele banida com o advento dom Código Criminal de 1830. A delação de Joaquim Silvério dos Reis, que mandou o nosso proto-herói Tiradentes para a forca, foi uma ação dentro da estrita legalidade de então.

Um século e meio de exclusão, eis que retornou ao ordenamento jurídico brasileiro a velha delação, recebida como uma panaceia para muito dos males das consecutivas políticas criminais adotadas pelo Estado brasileiro. Agnaldo Simões Moreira Filho conceitua a delação como sendo “[…] Denunciar alguém como autor de uma infração quando o denunciante é pessoa não incumbida de participar da repressão penal, nem é legitimamente interessada na acusação, e procura algum proveito indefensável”. Tem, portanto, sentido pejorativo: “Alcaguetar”. Isto basta. A delação premiada está hoje consagrada, no Brasil, por várias leis, a saber: a) Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/90, art. 8.º, par. ún.); b) Lei do Crime Organizado (Lei n. 9.034/95, art. 6.º); c) Código Penal (art. 159, 4.º, extorsão mediante sequestro); d) Lei de Lavagem de Capitais (Lei n. 9.613/98, arts. 1.º e 5.º); e) Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Lei n. 9.807/99, arts. 13 e 14; e, f) Lei Antidrogas (Lei nº 11.343/2006, art. 41).

Definitivamente, o legislador brasileiro fez uma opção pela delação premiada. E pouca coisa mudou, tocante ao comportamento dos delinquentes e aos índices da violência urbana. Na condição de advogado, dificilmente indicaria esse caminho a algum cliente. Mesmo porque a delação premiada tem base naquele estado psicológico em que a pessoa sente que tudo está irremediavelmente perdido e, assim, parte para “o tudo ou nada”, a busca por o tênue fio de esperança (que a delação premiada jamais será). Positivamente, não dá para ser feliz com tantos Joaquim Silvério dos Reis à espreita.