Diante da histeria com que alguns vêm tratando o tema da insegurança em Natal, resolvi publicar a resenha que fiz do livro do sociólogo polonês Zygmunt Bauman sobre o modo como nos relacionamos com a cidade em suas várias manifestações.
PS: Não se contente com a resenha. Procure o livro também, que é bem interessante.
RESENHA DO LIVRO “CONFIANÇA E MEDO NA CIDADE”, ZYGMUNT BAUMAN
Por Daniel Menezes
Na busca de atribuição de sentido para as alterações das práticas socialmente compartilhadas e empreendidas pelos indivíduos na vida urbana, pode-se apontar, em linhas gerais, a orientação pela via do risco e do medo, que vem se formando desde a derrocada do Estado de bem-estar social e a emergência do Estado mínimo, e de aspectos sociais, econômicos e culturais que valorizam as práticas voltadas para a busca objetiva por proteção direcionada contra um inimigo amorfo. Essas mudanças trazem não só resultados ambivalentes de uniformização do espaço urbano, cindindo ainda mais firmemente ricos e pobres, como também a possibilidade de aproximar ainda mais as pessoas, já que as cidades contemporâneas juntam, aglomeram e aproximam aqueles que querem se separar.
Essa é a questão fundamental que anima a análise realizada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman em Confiança e Medo na Cidade, que, ao produzir um trabalho ensaístico sobre a nova configuração urbana que vem se delineando nas grandes cidades, procura compreender as alterações sociais e psicológicas dessa mudança. Apesar de não ser referência do seu trabalho, Bauman parece querer compreender as características sociais constitutivas do novo fenômeno urbano, tal como fez o sociólogo e filósofo alemão Georg Simmel (1979) a mais ou menos um século atrás.
Para dar conta da tarefa a que se propõe, a obra está organizada em três capítulos, nos quais são discutidos os impactos engendrados pela emergência das mudanças urbanas acarretadas, especialmente, na fase líquido-moderna da sociedade ocidental.
Na estruturação da obra, percebe-se claramente um nexo entre os capítulos que permite dividi-la em três partes: a primeira, apresenta uma pormenorizada análise sobre as questões que dizem respeito à confiança e o medo na cidade, demonstrando que este medo e o desejo de um “porto seguro”, que, praticamente, nunca é encontrado, em grande medida, se relaciona com a construção de um processo sócio-urbanístico, que cria e generaliza uma nova sensação de insegurança. Posteriormente, ele apresenta os efeitos perversos e as possibilidades positivas deste processo, e, no último capítulo, reflete sobre aquele que, talvez, seja o maior inimigo fenomenologicamente construído do homem urbano – o “estrangeiro”.
O primeiro capítulo traz a perspectiva crítica de apresentação e análise dos fatores constitutivos da cultura do medo que vem se consolidando nos espaços urbanos. A cidade, reflete Bauman (2009), que emergiu como um espaço para proteger as pessoas dos “outros”, que não faziam parte do “nós”, agora parece perder sua função, sendo dominada por uma cultura do medo.
Esta cultura do medo, reproduzida, principalmente – mas não apenas –, pela classe média, avaliza políticas de controle e repressão com a esperança de dissipar seu problema. O problema é que, dominados pelo individualismo moderno e pela integração via afastamento, os agentes promovem o fim dos antigos e sólidos laços sociais em prol de uma tentativa desenfreada, ao mesmo tempo em que incerta, de superar a insegurança em que imaginam viver. As cidades social-democratas, que tinham uma relativa organização do “medo”, cedem espaço às novas aglomerações urbanas proporcionadas pela desregulamentação do Estado mínimo e do capitalismo flexível.
O capitalismo, que se organiza de modo cada vez mais global, forma uma agenda urbanística que acompanha este crescimento. Porém, esta nova configuração sócio-urbana deixa pouca brecha para as intervenções da política, que em certo sentido, agem em âmbito local. Incapazes de resolver os seus “problemas”, os cidadãos passam a procurar supri-los nas promessas mercadologicamente montadas para isso, criando o que o Bauman (2009) chamou de uma verdadeira “mixofobia” – o desejo de segurança, que se confunde com isolamento e com a suspeita crescente com relação ao “outro” e ao “diferente”. Nada de mistura nem de aproximações. Só os muros e os condomínios fechados podem, nesta perspectiva, resolver o problema das pessoas.
Bauman (2009), apesar do pessimismo inicial, tenta vislumbrar alternativas para essa jaula de ferro em que se transformaram os lares das pessoas. Deve-se perseguir aquilo que ele denominou de “mixofilia”, que é a tentativa de criar um ambiente propício para uma fusão de horizontes onde a diferença é, não apenas, respeitada, mas também valorizada. Se por um lado há uma desintegração do antigo “nós” sólido-urbano, a cidade, em suas novas manifestações urbanas, cria as condições para que os indivíduos, inevitavelmente, se aproximem e passem a experimentar novas sensações de convívio e respeito com relação ao outro. Porque os muros apresentam limites e as pessoas se vêm obrigadas a interagir com o “outro”. Daí pode surgir a composição de um novo “nós” baseado na “mixofilia”.
No segundo capítulo, Bauman (2009) disseca as implicações sociais da arquitetura que nasce com a cultura do medo, da incerteza e do risco. A arquitetura do medo tende a uniformizar. Os espaços modernos planejados pelos arquitetos e administradores públicos modernos, que privilegiava o acesso e o convívio público, são reconstruídos em prol da uniformização das casas dos residenciais vigiados pelas câmeras de seguranças, atravessadas por muros e cercas eletrificadas. As praças e espaços urbanos de convívio social perdem a sua significação e são fortemente contestados pelas novas gerações, aquelas que, justamente, mais sofrem com esse próprio esvaziamento urbano.
As consequências não intencionais das ações dos agentes preocupados com a segurança e que compram suas casas nesse novo ambiente uniforme é o de gerar, ao contrário do que eles desejam, ainda mais medo e incerteza. Nunca é possível estar totalmente seguro. Só a convivência diversa e democrática pode produzir o aprendizado social necessário para que os atores consigam conviver e, quem sabe, superar os riscos por eles mesmos construídos.
Diz Bauman (2009, p.74) já no terceiro capítulo: “[é preciso] ver, reconhecer e resolver os problemas da convivência”. E somos sempre os estrangeiros do outro, já que nos caracterizamos como vizinhos de pessoas que, em muitos momentos, mal nos conhece, mas que também não conhecemos.
Essa diferença vem sendo encarada nas novas agregações urbanas, através do estabelecimento de fronteiras com o “estrangeiro”, tentando, sobretudo, construir moradias “vedadas” em que não há brecha para qualquer ente externo. Seria o nosso “aconchego”. Um lugarzinho só nosso, longe de toda a “loucura” e “parafernália” da cidade.
O fato é que as cidades, na visão de Bauman (2009), se transformaram em depósitos de “lixo humanos” – pessoas se tornaram totalmente supérfluas. Não se trata mais do antigo “desempregado”, que, mesmo que isso em regra não acontecesse, tinha a possibilidade de ser novamente “inserido”. Era um horizonte, em certa medida, possível. Agora há o simples descarte das pessoas. Essas pessoas não apresentam qualquer possibilidade de serem “absorvidas” pelo sistema. Perderam a condição de serem chamadas de “gente”. Os espaços públicos cuidam, nas novas cidades, de expulsá-los e impedir que eles durmam num banco de uma praça ou faça um alojamento na grama de um parque. Bancos desconfortáveis para dormir e até sensores de água e de barulhos vêm sendo instalados nas principais cidades da Europa com o intuito de promover esta política de “limpeza humana”.
Além disso, a mesma cidade que abriga os condomínios de luxo produz os guetos da underclass, horroroso conceito americano, diz Bauman (2009), cunhado para enquadrar acriticamente os membros de uma suposta “classe inferior”.
Os cidadãos ditos de “bem”, quando procuram um lugar seguro, querem, de fato, esquecer que isso existe e se livrar dos membros da underclass. O “estrangeiro” precisa ser extirpado. O paradoxal é que, ao tentar criar maior segurança e conforto para si próprio, os membros dos condomínios fechados perdem a capacidade de convívio com o outro estrangeiro, o que aguça ainda mais o medo de qualquer tipo de contato com outras pessoas, incapacitando-as.
A questão é que essa separação nunca será total. As cidades se formam e a maior parte do gênero humano mundial já vive nelas, e a tendência é que esse número só aumente. É neste sentido que Bauman (2009) afirma que, ao invés de um choque de civilizações, deve existir um encontro de vizinhos, pois, para o bem da própria humanidade, a ideia de espaços urbanos vedados não são reais. São respostas construídas para os medos também construídos. Neste panorama o homem tem a tarefa de tornar a comunidade dos homens direcionada para a compaixão e para a plena compreensão e convívio com o outro.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: PEREIRA, Luiz (org). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.