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A Fauna Contemporânea de Esmeraldo Siqueira

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A importância e tradição do colégio Atheneu Norte-Riograndense para Natal e o Rio Grande do Norte são pontos fora de discussão. Criado em 1834, por ele passaram ilustres personalidades tanto no que diz respeito ao seu quadro docente como ao discente. Professores da envergadura de Câmara Cascudo, Cipriano Barata e Floriano Cavalcanti participaram da formação de muitos que futuramente ocupariam posição de destaque na política e na sociedade potiguar, a exemplo do ex-presidente e goleiro do Alecrim F.C Café Filho e de ex-governadores como Juvenal Lamartine, Garibaldi e Aluízio Alves e Wilma de Faria.

De todos os professores que passaram pelo Atheneu, talvez nenhum deles tenha sido tão polêmico e contra-hegemônico quanto Esmeraldo Siqueira (1908-1987).

Médico, professor, ensaísta, poeta e escritor, Esmeraldo lecionou História Natural na Escola Normal e Língua e Literatura Francesa durante no Atheneu durante muitos anos. Participou também da fundação das primeiras faculdades que comporiam a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como as de Filosofia e Farmácia.

Esmeraldo tinha o talento nato da prosa e da poesia, talento devidamente herdado por seu filho, o militante, ex-preso político e também poeta e professor Juliano Siqueira. Os versos do Prof. Esmeraldo, todavia, não costumavam tratar de abstrações difusas e intimistas e tampouco se emolduravam em pavoneadas estéticas tal qual a parnasiana. Tinham, tal qual o social pré-modernismo de Lima Barreto, sentido, alvo e finalidade certas: expor o útero da hipocrisia da classe política e da burguesia locais, quase sempre mirando nas distorções éticas e políticas cometidas em função dos altos cargos que ocupavam bem como do descabido prestígio que gozavam – e ainda gozam – junto à sociedade. Assim o é a sua “Fauna Contemporânea” (Editora Pongetti, 1968), uma obra explosiva onde o autor, com um peculiar e implacável sarcasmo, ignora as peias do mais contido eufemismo e desanca com categóricos versos as ilustres figuras de deputados, desembargadores, vereadores e demais componentes da elite potiguar da época. O prefácio e a nota que lhe iniciam conferem uma pequena mostra do que será encontrado no decorrer do livro:

Dezenas de Perfis…Creio que basta,
A título de amostras, para termos
Uma impressão desta época nefasta
De tantos tipos moralmente enfermos

Ei-la, a daninha corja que se arrasta.
Vêde-lhe os corações frios e ermos.
Ah! Possível não fora à musa casta
Pôr em cada vilão justos termos

Altiva pena minha, que cumpriste
Quanto dado te foi, rude e sincera,
Contra as hostes infames sempre em riste…

Não simplesmente de aço eu te quisera,
Mas do ignívomo ardor de uma cratera
A que nenhuma têmpera resiste

Nota: Deixamos de publicar várias sátiras deste volume, por motivos que explicaremos noutra oportunidade. Alguns dos agora contemplados já morreram, mas, se a morte é respeitável, nem por isso certos mortos são dignos de respeito. Enganou-se, portanto, Shakespeare ao afirmar que quem morre paga todas as dívidas.
Propositalmente, a maioria dos versos satíricos contidos na obra não traz o nome dos “homenageados” – provocando uma incômoda e conveniente curiosidade do leitor -, figuras de grande notoriedade na época em que foram publicados. Noutros, todavia, não faz o Prof. Esmeraldo qualquer questão de esconder as alcunhas dos seus protagonistas, a exemplo das estrofes abaixo:

LULALVES

Em louca atividade embromatória,
De um ridículo enorme, formidando,
Lá se vai o Lulu, bufão da história
Mentindo, corrompendo, degradando.

Por onde passa, nessa faina inglória,
Malucos e imbecis fanatizando,
Lembra aquela figura aberratória
De frei Damião à testa do seu bando.

O quatro é tal que, às vêzes, turba o siso,
Vence o nojo, a revolta, e, de tão chulo,
Obriga o homem mais sério a um largo riso.

Mas as fôrças do bem cortam-lhe o passo.
Esse malandro aventureiro e nulo.
Já fracassou até como palhaço.

Apesar de impactante, os versos acimas não são, definitivamente, os únicos da obra que “afagam” a figura do falecido e mais famoso patriarca da família Alves. Os próximos, por exemplo, são dedicados também a Walfredo Gurgel, monsenhor, ex-governador do RN e hoje nome do maior hospital do estado:

Falso enigma

Muitos não sabem nem descobrirão,
Apesar de tão simples, o segrêdo
Dessa anti-apostólica união
Do rei Lulu com Monsenhor Walfredo

– A causa santa! – os nécios zurrarão,
– Lil quer ser um novo Godofredo,
Um moderno cruzado! – nos dirão,
Sem notar a loucura do arremêdo.

Não pode haver, contudo, neste mundo,
Êrro mais crasso, engano mais rotundo
Do que dar de tal dupla esta razão.

Lulu, desde o comêço, e só por mêdo
Das penas infernais, mantém Walfredo
Para lhe ministrar a extrema-unção.

Seguindo a fiel linha de confrontar o conservadorismo e as idiossincrasias da sociedade e das forças políticas locais, o poeta também não perdeu a oportunidade de achincalhar a conhecida verve populista de Aluízio Alves ao escrever uma sátira de título no mínimo inusitado:

Momo-Lulu

Evohê! Evohê! O nôvo Momo
Corre a cidade entre fanfarras e hinos,
Deus aclamado, venerado como
O truão mais amado dos meninos.

Natal transfigurou-se em vasto cromo
De variegados tons clorofilinos,
Floresta andante, num febril assomo,
Carregada nas mãos dos peregrinos

Momo-Lulu, de verde travestido,
Escuta de crianças o alarido,
Em macios coxins refestelado.

Sonha a miragem verde: a Glória…Alcânce-a!
De fique o seu nome eternizado
No Livro Verde do Jardim da Infância.

Diferentemente do que alguns podem achar, não é Aluízio Alves objeto de todas as páginas do livro. Os versos abaixo, por exemplo, tratam – com uma lacônica e singular singeleza, a começar pelo seu título – de uma senhora anônima, mas, ao que tudo indica, de grande prestígio nas altas rodas da cidade.

Decrépita!

Oitenta nos já fêz a “Baroneza”
E há quatro lustros que não sai de casa.
Em gelo transmudou-se a antiga brasa,
Nada mais resta da fogueira acesa.

Mocidade, vigor, nome, riqueza,
Foi tudo sonho, um simples bater de asa.
Volúpia, como a tua taça é rasa!
Vida, quanto és efêmera e indefesa!

Hoje, decrépita a que fôra outrora
Sem rival no prazer, tanto a pletora
Do seu sangue sensual em chama ardia…

Nem mais, talvez, se lembre dos instantes
Das velhas noites, no Tirol, de orgia,
Quando feliz reinava entre os amantes.

Outro homenageado cujo anonimato causa, sem dúvida, uma grande curiosidade, é o do poema “Velho Parasita”, abaixo reproduzido:

Nasceu em nosso Estado (pobre Estado)
E reside no Rio de Janeiro.
Onde tem, com razão, sempre gozado
Da maior fama de trampolineiro.

De fato, êsse gatuno consumado
Deve e não paga a Deus e ao mundo inteiro
Encontrou no Brasil seu El-Dorado,
E vai morrer de velho o trapaceiro

Vejam que mundo! Há quem o julgue um astro
E, sem poder, lhe caía aos pés, de rastro
Como defronte de sagrada imagem.

No entanto, o sorna, o parasita infando,
Prossegue inútil, como sempre devorando
Os grossos lucros da politicagem.

Dentre os poucos poemas cujos contemplados são identificados, a sátira abaixo é, sem dúvida, uma das mais escrachadas do livro, explicitando a forte oposição que o autor – comunista inveterado – nutria para com os grupos oligárquicos que até hoje se mantém dominando a política local:

Agneladas

Ia nascer dromedário,
Mas a parteira Maroca
Teve um susto extraordinário
Quando viu que era uma foca.

Das verdades que revelo,
De fácil comprovação,
A mais gozada é Agnelo
Querendo bancar Dom João

Feio por dentro e por fora,
Eis Agnelo…e eis por que
A própria mãe geme e chora
De desgosto, quando o vê,

Quer ser prefeito o magano,
E o será, pois tem tineta.
Bastar ser irmão germano
Do grande Lulu Capeta

Há quem atribua À sina,
Chame predestinação
Viver de infâmia e rapina,
Ser político e ladrão.

Um medonho puxa-saco
Gabou-lhe o riso fanhoso,
Outro, o porte de macaco
Achou-lhe bonito e airoso.

Genial, polêmico, incisivo e sarcástico, assim o era o Prof. Esmeraldo, inimigo das convenções sociais burguesas, da insensibilidade das oligarquias, da estupidez cotidiana das elites e, principalmente, inveterado algoz da mediocridade, não importa sua faceta, seja na sociedade, na política e até mesmo na literatura, como não deixa de observar na sua ácida “Áurea Mediocrítas”

A mediocridade infesta/ Os arraiais literários./ Asnos exibem na testa/ Triunfos extraordinários. // Dão-se prêmios repetidos/ A livros que valem nada,/ De versos desemxabidos/ Ou prosa vazia e aguada. // A tropa dos imbecis/ Governa a literatura,/ Fazendo deste país/ O céu da cavalgadura.

Diante da constante renovação da fauna potiguar, impossível não imaginar uma reedição atualizada da obra, abarcando as não menos lamentáveis personalidades que hoje a compõem. E haja papel.