E aí? Bora fazer pose de pseudo-intelectual hoje? Vamos aproveitar e regulamentar, em lei, quem pode e quem não pode fazê-lo, né? Pois é o que pretende fazer um deputado gaúcho com seu projeto de lei. Giovani Cherini elaborou um PL no ano passado com o objetivo de definir o ofício de filósofo no Brasil. Basicamente, só pode filosofar bacharéis, licenciados, mestres e/ou doutores em filosofia, cabendo uma mamata extra a quem, não pertencendo à área por formação, filosofa há mais de cinco anos. O PL estabelece ainda a Academia Brasileira de Filosofia como “representante da filosofia e língua filosófica nacionais” (art. 7o.). O filósofo, devidamente diplomado e de carteira assinada, será o guardião da filosofia, do pensamento e das idéias.
Tá. Quem deve filosofar, no fim das contas? Essa pergunta, no Ocidente, remete a Sócrates e Platão, os primeiros a baixar o pau nos sofistas (segundo eles, arremedo de filósofos). O couro comeu pro lado de pensadores como Eriúgena, Spinoza, Descartes, Schopenhauer, Nietzsche – o primeiro por pouco não foi excomungado da igreja católica e o segundo foi preso. Os idealistas quiseram definir como é que se filosofa, e os analíticos também. Quem já leu sobre as polêmicas entre Schopenhauer e Hegel, Derrida e Searle tem uma idéia bacana de como as disputas se processaram nos últimos séculos. Os critérios da disputa variam, desde o respeito ao cânone até o modo de escrever; os analíticos recusam o rótulo de filósofo a quem faz malabarismos estilísticos, escrevendo com cem palavras o que se pode dizer em meia. (Segundo este critério, Hegel seria retirado do cânone imediatamente, e não é à toa que uma parcela dos analíticos o abomina.) Já os idealistas alemães gostavam de elaborar sistemas, elegendo dois ou três pontos de partida e estabelecendo-os como pedras de toque para explicar tudo o mais que houvesse na filosofia e no mundo. Quer dizer, o pega-pra-capar já começa no interior da própria filosofia. Voltarei a esse ponto mais adiante, mas saiamos da filosofia e entremos no PL.
O primeiro detalhe do texto da primeira redação é simples: o projeto de lei possui apenas quatro páginas, incluindo a justificativa. Mal define os termos-chave, que, ao que parece, só se resume a um: filósofo. Há os termos “filosofia”, “pensamento”, “idéias”, e a expressão “Academia Brasileira de Filosofia”. São apenas dez artigos, os dois últimos sendo pura encheção de lingüiça, já que poderiam ser reunidos em apenas um. A lei que regulamenta a profissão de assistente social possui 24 artigos, alguns dos quais bastante detalhados; o Estatuto do Advogado é composto de 87 artigos, gente! Mas se é pra pagar pose de pseudo-intelectual, eu pergunto: quem assessorou o deputado Cherini? Porque, se houve assessoria, ela se esqueceu de um detalhe: qual é o critério para definir os termos a que me referi no início do parágrafo? Quem filosofa? Quem pensa? O que são “idéias”? Só os filósofos têm idéias, e de que tipo? E quem deve definir? A Academia Brasileira de Filosofia, eleita como guardiã do pensamento filosófico no Brasil pelo deputado?
O outro detalhe diz respeito à formação do filósofo. Este ponto não parece tão delicado quando se trata do ensino básico, já que só se pode ensinar filosofia quem é licenciado em filosofia – embora, naturalmente, haja uma massa considerável de professores já formados, concursados (e esperando a nomeação) ou desempregados pela falta de postos de trabalho em escolas públicas ou privadas (principalmente nas públicas). Sem falar nos estagiários de outras disciplinas, que às vezes são colocados para dar aula de filosofia (o contrário também existe, claro), e nos professores efetivos que se encarregam da disciplina pela negligência (pois não vejo outra palavra para o problema) em contratar o profissional adequado para a formação dos alunos. Quando se sobe o nível de formação, contudo, a coisa muda de figura: os concursos costumam pedir aderência acadêmica, o que significa possuir pelo menos graduação e doutorado na área. É bem verdade que não é tão difícil encontrar professores que pularam de área em área até chegar na filosofia; aqui na UFRN, dos professores que lecionam na área de lógica e adjacências, duas são formadas em matemática, um em engenharia da computação e outro em medicina (embora possuam pelo menos um mestrado ou doutorado em filosofia). Ainda assim, há aqueles que não possuem nem graduação, mestrado ou o que seja em filosofia, mas fazem incursões rotineiras em alguma das subáreas, a exemplo do lingüista da Unicamp Kanavillil Rajagopalan, que brinca há anos com filosofia da linguagem (e é o dono do maior Lattes nas humanidades aqui no País que eu conheço). Thomas Kuhn, o filósofo da ciência, era físico de cabo a rabo em sua formação. Deveríamos pedir a esses senhores que pulassem fora do domínio filosófico só por não terem formação acadêmica estrita em filosofia?
O terceiro detalhe diz respeito ao cânone. Queiramos ou não, o incurso na filosofia exige um conhecimento mínimo do que se considera “pensamento filosófico tradicional”, o que é obrigatório a quem se forma em filosofia ou em outras áreas. Michel Onfray elaborou uma Contra-História da Filosofia, só com pensadores não-canônicos, mas para isso ele precisou saber quais eram os pensadores canônicos (jura?). O que importa, em todo caso, é ter um mínimo de leitura dos textos clássicos e de comentadores, pra não sair cometendo gafes grosseiras ou chover no molhado. Mas mesmo o cânone pode ser questionado: ora, quem disse que precisa ser sempre a filosofia ocidental? E as demais vertentes filosóficas pelo globo, não contam? Quem disse que só é possível filosofar em alemão leu Heidegger demais pra meu gosto. Há aliás um campo recente de pesquisa nesse sentido – a filosofia comparada (link em inglês), ainda pouco conhecida no Brasil; até o momento, só sei de uma única disciplina oferecida em nível de pós-graduação na área, na UnB.
Só esses pontos, creio, dão uma dimensão da falha na redação do projeto. Tá em circulação um abaixo-assinado contra o PL. Aproveite pra assinar e, se possível, acompanhe o trâmite do projeto na Câmara dos Deputados. Sindicalizar a filosofia é ridículo – Aristóteles escarneceu de seu mestre, Platão, por este tornar obrigatório o estudo de matemática em sua Academia pra filosofar. Como bem lembrou um cara nos comentários do abaixo-assinado, parece que a Academia Brasileira de Filosofia pretende se projetar com esse objetivo. Nos cinco meses que morei no Rio em 2009 fazendo mobilidade acadêmica na UFRJ, só passei por lá uma ou duas vezes, no máximo. Ela é tão expressiva que o IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais), que fica próximo (ambos no Centro), não tinha um único cartaz de eventos produzidos por aquela entidade durante o tempo que estive lá.
Já chega. Cansei de brincar de pseudo-intelectual.
P.S. (acrescentado em 15 de março deste ano): por meio da Revista Piauí, descobri que o redator do projeto é artista plástico e fotógrafo (sem carteira!), e milita em favor dos “movimentos de vanguarda da arte brasileira”. O cara é presidente da referida Academia, e copiou (minto, decalcou) do regulamento da profissão de sociólogo. Se o projeto for aprovado, é possível que formados em filosofia avaliem obras do PAC, por exemplo. Já pensou o papai aqui se aproveitando dessa mamata?
Publicado no Blog No País da Ciberescritura