Você pode até não ter visto ainda, mas o documentário “Kony 2012” já é o maior viral da história da internet. O vídeo, que tem meia hora de duração (o que contradiz a ‘regra’ de virais), teve mais de 100 milhões de acessos em apenas seis dias. Ultrapassou fenômenos como a apresentação de Susan Boyle no “Britain’s Got Talent” ou o videoclipe “Friday”, da cantora Rebecca Black.
O caráter revolucionário do vídeo – do ponto de vista da comunicação – é que não há nenhuma piada nele, nem nenhum elemento que, por padrão, transforma ações em virais. “Kony” foi um vídeo feito pela ONG “Invisble Children” e denuncia os abusos que o chefe de uma milícia revolucionária de Uganda pratica com crianças no país africano. Ele transforma garotos em guerrilheiros e meninas em escravas sexuais.
Estima-se que mais de 30 mil crianças estejam nessas condições. Ao misturar linguagem publicitária com documentário, Jason Russell – criador da ONG e diretor do vídeo – conseguiu o que queria: publicizar o nome de Kony, considerado um criminoso pelo Tribunal Penal de Haia, para, assim, cobrar ações dos governos para sua captura e para seu eventual julgamento e prisão.
De lá para cá perduraram argumentos e teorias da conspiração que atacam e defendem o vídeo. A crítica mais consistente que li é: do ponto de vista jornalístico, o documentário é fraco, podia ter se aprofundado mais. Críticos do que chamo de “esquerdismo de porta de boteco” especulam o interesse na área como consequência de uma suposta (não comprovada) descoberta de petróleo na região, o que teria despertado interesse bélico dos EUA.
O fato é que a campanha atingiu seu objetivo. Muita gente hoje sabe quem é Kony. O problema, me parece, está na simplificação do debate sobre as dificuldades do país africano. Jornais como o The Guardian, o Al Jazeera e o NY Times entendem isso e uma boa centena de textos pode ser encontrada sobre o tema nestes veículos. Uma série de questões foi levantada inclusive pelo ponto mais polêmico do vídeo: o de que ele traria, por trás da tese que expõe, um conceito de “White Power”, de que só o homem branco poderia resolver o problema num país negro. Um exagero, eu penso.
Há muita especulação para poucos fatos e ações concretas. Atividades abusivas de grupos guerrilheiros na África que incluem, além de sequestros de crianças, práticas de abuso sexual, estupros e outras calamidades ocorrem há décadas sem que ninguém tenha movido uma palha para resolvê-los. O vídeo tem o mérito de trazer isso de volta à discussão e de questionar essa condição. Por que, com tantos abusos aos direitos humanos, nenhuma ação é tomada para evitá-los?
Um ponto que acho particularmente interessante está logo no início do documentário, quando Russell e seus colegas procuram o Governo americano para saber quais ações eles poderiam tomar para tentar resolver o problema na África. A resposta foi desoladora: sem haver ameaça à integridade territorial ou ao sistema econômico do país, os Estados Unidos não poderiam fazer nada.
Outro ponto que chama a atenção é que o discurso do vídeo casa, exatamente, com o discurso de movimentos como o “Occupy”, ou o “M8M”. Aquele de que, num mundo globalizado pela internet, as ações sociais podem ser conjuntas e cada pessoa tem o poder de pressionar o “establishment” para, assim, alterar o rumo da política, da economia e também o próprio mundo. Uma retórica que está além do discurso político partidário padrão e de conceitos como a esquerda e a direita e que vem conquistando cérebros e corações mundo afora.
É óbvio que, para a resolução de um conflito local, é preciso tomar cuidados extremos de forma a se respeitar a soberania e a cultura própria da região. Há complexidades do ponto de vista cultural e político que merecem uma atenção que o vídeo, infelizmente, não deu. Se uma ação da ONU for tomada, por exemplo, ela precisará ser cuidadosa, sem o objetivo de “catequizar” o país ou explorá-lo, mas de uma forma que garanta a integridade física e a dignidade humana das pessoas que vivem ali.
Apesar de tudo, inclusive das críticas, o documentário joga luz para uma região com problemas humanitários devastadores e que mal nos preocupamos. Acima de tudo, ele mostra ainda que, mais importante que petróleo, comunismo, capitalismo, teocracia e democracia, está o respeito aos direitos fundamentais do ser humano e esse respeito é comumente desprezado e esquecido.