Sobre os procedimentos de seleção nos Programas de Pós Graduação e relações sociais na academia
Por Gisele Lopes, Graduada em Ciências Sociais (Unesp)
Aos
Estudantes e Professores de cursos de Ciências Sociais
Eu, Gisele Lopes, graduada em Ciências Sociais (Unesp, 2010), venho através desta propor uma reflexão acerca das formas de ingresso e a estrutura de poder vigentes na academia. Tal ação, de escrever aos membros de institutos de Ciências Sociais para trazer à discussão este assunto, nasceu da indignação e sentimento de impotência diante de um desmando por mim sofrido em um processo seletivo a um Programa de Pós Graduação em Sociologia, em que minha eliminação decorreu do descumprimento das regras do edital, em circunstâncias fortemente suspeitas e irregulares. [Ao final deste texto, abaixo da assinatura, transcrevo o recurso apresentado ao referido programa de pós, que detalha os acontecimentos. Caso alguém tenha interesse em conhecer os detalhes, e para assegurar a fidedignidade das informações prestadas, todos os documentos citados encontram-se em anexo].
Embora alguns estudantes se sintam vocacionados ao trabalho científico, as condições de ingresso e permanência na carreira dependem, no dizer de Weber, de um “acaso incontrolável”. Passado quase um século desta sua conferência (A Ciência como vocação, 1919), com a permanência e agravamento desta situação, parece ter chegado (senão já passado) o momento de nomear e discutir o que vêm a ser e como se reproduzem estes “acasos”. A hierarquia de posições e poder que estrutura a carreira acadêmica acumula, em um polo, toda a força e tomada de decisões, e, de outro, toda a dependência e submissão. É quase desnecessário dizer que tal sistema propicia uma série de distorções e arbitrariedades.
A relação entre orientadores/orientandos estabelece uma forma perversa de clientelismo, que sempre me pareceu semelhante a uma sociedade de corte medieval, com suas relações de suserania e vassalagem. Os professores doutores concursados ou titulares, estabelecidos no topo da hierarquia acadêmica e habilitados a lecionar e orientar (frequentemente sinônimo de tutelar, doutrinar e explorar) pesquisas em centros de pós-graduação, tratam a estes institutos como se fossem seus próprios feudos. Mesmo estando em Universidades Públicas, arvoram-se à posição de proprietários da vaga que detêm temporariamente por concessão e para prestação de serviços educacionais. “Esquecendo-se” de sua condição de servidores públicos – e dos princípios da moralidade, transparência e impessoalidade, que deveriam pautá-los – muitos acadêmicos patrimonializam seus cargos de professores/pesquisadores e os utilizam como bem o entendem.
A expressão “autonomia universitária” serve, na estrutura da carreira acadêmica, apenas como eufemismo a encobrir a prática de abusos, irregularidades, injustiças e conchavos de toda a espécie sem que se seja incomodado ou fiscalizado. Entre os pares, reina a prática corporativista de “uma mão lavar à outra”, para tudo continuar sujo. Quando “autonomia” é apenas um instrumento para legitimar desigualdades e abusos de poder, ela precisa ser regulada e fiscalizada – não para ceder espaço a autoritarismos e arbitrariedades provenientes de outras fontes, mas para reger-se pela isenção e transparência. O que pensar de uma carreira cujo ingresso depende, ao fim e ao cabo, da discricionariedade de uma só pessoa, e cujos processos seletivos e suas regras sejam mera fachada de formalidade? O que pensar quando se percebe que as relações afetivo-pessoais (e também as desavenças) são mais relevantes do que a aptidão para a ciência?
Talvez esse texto possa parecer a alguns mera demonstração de ressentimento de alguém que foi lesada e precisa externar sua frustração. Em parte o é, embora não se esgote aí, e, nem que o fosse, se tornaria por esta causa ilegítimo: Tocqueville, no século XIX, maravilhado com as instituições democráticas americanas, citava a liberdade de imprensa e a proliferação de jornais como uma espécie de freio à tirania, já que, de acordo com ele, até os cidadãos mais frágeis e desprotegidos poderiam se valer dela para expor publicamente os desmandos a que eram submetidos. Parece-me que hoje a internet tem o potencial de desempenhar papel semelhante, conseguindo trazer a público informações e denúncias que poderiam ficar circunscritas apenas às partes envolvidas no episódio. No entanto, mais importante do que isso, é sua capacidade manter em pauta discussões e propostas para questões sociais e institucionais pertinentes.
Infelizmente, sei que o que me ocorreu não é um caso isolado, e sim absurdamente frequente, pois a estrutura de poder na academia dá guarida e favorece a ocorrência desse tipo de arbitrariedade. À boca pequena, nas conversas de corredores que quase ninguém ousa levantar nos fóruns abertos, não faltam registros de casos aberrantes que se dão nos bastidores: de assédio moral e sexual, troca de favores para a obtenção de posições e até a classificação de candidatos reprovados de acordo com as regras dos programas, mas aprovados por critérios de simpatia e apadrinhamento, e vice-versa. Além, claro, da “necessidade” de uma subserviência crônica aos caprichos do superior hierárquico, que se explica pela situação de tutela do estudante, dependente de assinaturas, aprovação e indicação de contatos para se viabilizar neste campo. Em se encontrando um professor que se recuse às suas obrigações, que aja de má-fé ou má vontade, sabe o orientando que toda a sua carreira, independentemente de sua qualidade científico-intelectual, poderá estar comprometida. A bajulação e submissão são pré-requisitos essenciais e subentendidos, parte daqueles códigos de conduta não escritos e quase nunca verbalizados. Por isso mesmo, quase nunca questionados: nas universidades, enquanto uma parte de seus membros permanece alheia a tudo o que ocorre, absorta em suas baladas, outra simplesmente adapta-se à esta sociabilidade corrupta. Há ainda a parcela daqueles que, mesmo interessados e aptos à pesquisa, acaba por desistir por não se ver capaz de sobreviver a este ambiente insalubre e opressor.
Conhecendo situações vivenciadas por diversas pessoas em várias instituições de ensino, e refletindo sobre a recorrência destas práticas, vejo que o maior problema não está em um ou outro personagem destas histórias, mas sim na estrutura de poder no interior do campo acadêmico, que as mantém e reproduz. Enquanto as estruturas de poder e tomada de decisões na Universidade não forem mais democráticas, de cima a baixo e de baixo para cima, e enquanto as relações de trabalho acadêmico não se modernizarem e perderem esse caráter nobiliárquico, de clientelismo e favoritismo, todo o sistema seguirá se perpetuando. Teremos, simplesmente, os estudantes de hoje, sucedendo à geração atual e reproduzindo suas práticas e desmandos. Pois o sonho de muitos dos que um dia foram oprimidos é tornarem-se, eles mesmos, os opressores.
Talvez o que mais me impressione seja a contradição entre os nossos estudos como cientistas sociais, na desnaturalização, no desvendamento de mecanismos obscuros das instituições e a nossa incapacidade de refletir criticamente sobre nossa práxis. A desenvoltura com que descrevemos e aplicamos conceitos como “patrimonialismo”, “clientelismo”, “impessoalidade”, “coisa pública”, “nepotismo”, “transparência”, “justiça”, “democracia”, “igualdade” etc e com que analisamos, criticamos, julgamos e propomos medidas para outros campos é incompatível com as práticas vigentes na academia. Provavelmente porque seja mais simples, mais cômodo, apontar a falta de democracia na Universidade apenas nos atos de quem se encontra no topo da hierarquia. Como se a responsabilidade por todas as mazelas da Universidade fossem dos reitores, e no limite, dos governos estaduais ou federal. Como se o que a universidade é, ou vá se tornando ao longo do tempo, não tivesse participação alguma de seus atores mais numerosos e cotidianos: professores e estudantes.
Tudo o que eu posso fazer, neste momento, é propor esta reflexão sobre o campo acadêmico, e, especialmente, sobre seus procedimentos de seleção, para que sejam debatidas em cada curso de Ciências Sociais, em cada órgão colegiado de programas de pós graduação relacionados à área. Algo precisa ser feito, propostas precisam surgir e serem postas em avaliação, pois só assim o atual estado de coisas poderá começar a se alterar. Para não dizer que não falei das alternativas, proponho que se avalie, debata e se busque outras soluções efetivas, além destas:
Curto prazo:
1. Editais escritos com clareza e minúcia – assim como o são os editais dos demais concursos públicos, livres de lacunas e ambiguidades em suas regras (que, interpretadas pela comissão de seleção, obviamente, serão manipuladas para a decisão que mais lhes favoreça).
2. Obrigatoriedade de divulgação pública das notas de todos os candidatos, aprovados e reprovados, ao final de cada fase do processo seletivo (prova de conhecimentos gerais, proficiência em língua estrangeira, avaliação de currículo e projeto, resultado da entrevista pela banca), como forma de conferir um pouco mais de transparência ao processo.
3. Após a aprovação do candidato em todas as fases acima descritas, caso o orientador desejado se recuse a orientá-lo, a possibilidade de o candidato escolher outro professor do programa de pós-graduação, até esgotar a tentativa com todos os professores que ainda tenham vagas em aberto.
Médio e longo prazo:
4. A possibilidade de criação de uma superintendência dos programas de pós-graduação da área, que funcione como uma instância reguladora, na forma de conselho (com representação de docentes e discentes), e que tenha atribuições de ouvidoria e de sanção disciplinar em caso de desvios e irregularidades. Tal instância poderia ser um conselho da Anpocs ou conselhos específicos para cada área (ABA, ABCP e SBS, para Antropologia, Ciência Política e Sociologia, respectivamente).
5. A verificação da possibilidade de criação de um exame nacional como parte da seleção para os candidatos ao mestrado na área de Ciências Sociais, de forma similar ao que ocorre na seleção para os centros de economia (mais informações sobre como funciona o exame da Anpec – Associação Nacional de Pós Graduação em Economia, neste link: http://www.anpec.org.br/exame.htm). Se a existência desta forma de seleção não elimina a ocorrência de fraudes, pelo menos a dificulta, tornando o processo um pouco mais impessoal. Vale notar que alguns dos mais respeitados institutos de pós-graduação em economia do país, no ingresso ao mestrado, utilizam exclusivamente o exame da Anpec como forma de seleção, fazendo com que a forma de ingresso seja o mais impessoal possível, o que diminui o peso da discricionariedade dos acadêmicos (ao menos na seleção).
Apenas para constar: dos 36 centros de pós-graduação em Economia associados à Anpec e que realizam seu exame como forma de ingresso ao mestrado, ao menos 27 deles tem a opção de fazê-lo de forma exclusiva (ou seja, sem a necessidade de outras fases. Portanto, sem a famigerada “entrevista com o orientador”, geralmente um jogo de cartas marcadas).
Sem mais.