A cultura popular do futebol é rica em máximas e adágios famosos. Entre eles, um dos mais conhecidos é a máxima: “há coisas que só acontecem com o Botafogo”. Transpondo o velho ditado sobre os infortúnios do clube carioca para as terras potiguares, poderíamos parodiá-lo dizendo que “há coisas que só acontecem no Rio Grande do Norte”.
Para permanecer no âmbito do futebol, um desses ditos mistérios que somente têm lugar no RN é a ausência inexplicável de transmissão televisiva em canal aberto de nosso Campeonato Estadual de futebol. Em nossas casas e bares, continuam a nos empurrar goela abaixo os clubes cariocas, paulistas e seus campeonatos.
Apesar de contar com dois clubes atualmente na segunda divisão do Brasileiro, e de ambos gozarem de um momento de ascensão no futebol nacional, nossas TVs abertas não se seduzem diante de nosso ascendente Campeonato Estadual. Ele continua a ser reiteradamente ignorado, tratado como uma apêndice para preencher alguns minutos nos noticiários locais. Ao contrário do que acontece em outros estados da Federação, a televisão com maior índice de audiência no RN sequer disponibiliza aos milhares de torcedores um programa exclusivamente voltado ao esporte.
A pouca cobertura do futebol estadual pelos canais locais torna o RN uma das raras e lamentáveis exceções no Nordeste. Enquanto estados como Ceará, Paraíba, Alagoas, Pernambuco e Bahia transmitem em TV aberta seus certames, inclusive contando com programas de debate e entrevistas, no RN, por sua vez, estes últimos são escassos e a única opção de transmissão ao vivo é a esforçada TV União, que opera como canal aberto apenas em alguns municípios do Estado (nos outros continua sendo TV fechada).
O descaso dos canais televisivos locais se estende até na divulgação à nível nacional de nosso futebol – o envio de videos com os gols do campeonato potiguar. Isso acarreta, indiretamente, sérios prejuízos financeiros aos clubes, pois desperdiça-se preciosas oportunidades de divulgar e estampar suas “marcas”, imagens e patrocínios em canais e programas de larga audiência e alcance. Assim, não são apenas os torcedores potiguares que sofrem com a quase sempre frustração de assistir os gols do seu time do coração nos principais canais e programas esportivos do país, os anunciantes, patrocinadores e dirigentes são também afetados por este descompromisso.
Nessa negligência há bem mais do que limitações financeiras ou técnicas. Por debaixo das desculpas e do desinteresse se oculta uma verdade desagradável e da qual não se gosta de ouvir: nosso complexo de inferioridade com respeito a tudo o que é local, interno, “nosso”. Como parte da cultura, o futebol não poderia deixar de se imiscuir naquelas representações sociais e consensos que fornecem a moldura e os reflexos de nossa autoimagem como cultura, estado e povo.
Num plano particular, o RN parece exagerar ou incorporar mais decididamente este traço mais ou menos contingente da identidade cultural do Nordeste e do nordestino, cuja fórmula de sentido consiste em definir e enxergar a si mesmo e suas produções como inferiores em relação aos “outros”, concebidos como mais modernos, desenvolvidos e competentes do que “nós”. Essa autoimagem inferiorizada não é, de modo algum, natural, inerente aos nordestinos ou à região. Ela decorre da assimilação de imagens e falas negativas que, historicamente, marcaram e marcam a região, seus habitantes e produções culturais.
Como sintetiza o historiador Durval Muniz: “o Nordeste é uma cristalização de estereótipos que são subjetivados como característicos do ser nordestino e do Nordeste”: o atraso, o rústico, o subdesenvolvimento, o vitimismo, a necessidade e dependência econômica. A interiorização dessas imagens do Nordeste e das falas negativas sobre o ‘ser nordestino’ acabaram por precipitar nas consciências dos nordestinos a acomodação de sentimentos de inferioridade, hábitos de vitimização e desvalorização pessoal e cultural, descrença e automartírio.
O RN, parece-me, que radicaliza essa convicção incorporada geradora duma autoimagem profundamente negativa, inferiorizada e cética de si mesmo. Como poucos estados e povos, o Rio Grande do Norte e os potiguares sofrem de pudor e de vergonha de acreditarem em si mesmos. Seja qual for a matéria, estes parecem cultivar um hábito quase patológico de autorebaixamento. Como no velho “complexo de vira-latas”, descrito por Nelson Rodrigues, os potiguares parecem não se importar em demasia em se colocarem como inferiores, de forma mais ou menos voluntária, em face do restante do mundo. E, como era de se esperar, o futebol não escapa desse exercício de autodesqualificação que, ao se estender socialmente, acaba por produzir como resultado indireto o pouco apoio e engajamento financeiro, político e midiático; o selo batido que caracteriza a relação e a atitude comuns dispensadas ao futebol local por parte de uma gama de agentes próximos ou ligados ao mundo da bola.
Para constatar esse autorebaixamento “voluntário”, observem-se algumas das falas típicas e desdenhosas, saídas da boca daqueles que acompanham com indiferença os nossos clubes: “ABC e América só fazem vergonha fora do estado”, “nosso futebol não presta, só apanha dos times de fora”, entre outras. Ou, uma prática derrotista não tão antiga que levava os dirigentes dos grandes clubes do estado a modificar os horários dos seus jogos para fugir da “concorrência” de campeonatos cujos jogos se passavam a mais de três mil quilômetros daqui. Mesmo a questão dos torcedores que optam por torcer por dois clubes – um do eixo Rio/SP e outro regional –, os famosos “mistos”, diz respeito, numa dosagem considerável, a essa autodesqualificação e ao “complexo de vira-latas” profundamente arraigados no imaginário social da região e nas consciências de seus habitantes.
Examinar e criticar a negligência e o desinteresse das TVs abertas em relação ao futebol local pode nos ajudar a entender como estas exprimem determinados aspectos de nossa cultura e da reprodução de nossa autoimagem inferiorizada. Aqueles são, em parte, sintomas desta. Assim como outras posturas e ‘pré-conceitos’, a indiferença e o dar de ombros típicos de parte da imprensa do RN quanto ao valor do futebol local, inscrevem-se, entre outros fatores, neste caldo cultural que qualifica, de antemão, nossa identidade e produções culturais como inferiores, fracassadas e atrasadas em relação às regiões supostamente mais modernas e desenvolvidas do Brasil.
Urge pensar e praticar formas alternativas de se contrapor a essa covardia moral que assume e torna aceitáveis e verdadeiros nossa subserviência e nosso sentimento de inferioridade em relação aos demais. Mas que, ao mesmo tempo, recusem o bairrismo ou concepções megalomaníacas e essencialistas de identidade cultural. Em todos os lugares e épocas, o radicalismo identitário somente conduziu a fascismos, violências, xenofobia e outros ódios. O futebol é um espaço e uma prática cultural estratégica na discussão acerca dos tipos de relação subjetiva, isto é, as formas de vinculação emocional que as pessoas devotam a suas identidades, cultura e regiões. Torcedores, dirigentes, empresários e, sobretudo, a imprensa precisam levar mais a serio nosso futebol, enxergá-lo em suas potencialidades, inscrevendo-0 num quadro mais amplo e complexo.