Minha garganta está seca. Levanto o polegar para o garçom. Ele já sabe: quero uma garrafa de Bourbon.
Ela abre a porta. Entra.
Ponho um trago no copo e bebo de uma vez, já enchendo o copo novamente. O alívio da ânsia incessante percorre o meu decrépito corpo. Por todos os lados, apenas o bar que visito há anos desde que minha mulher me deixou, justamente por causa do… olho para o copo. Dessa vez bebo mais lentamente, saboreando um amor antigo. Martha…
Ouço um sax ao fundo, mas não o conheço. Músico novo, suponho. É uma frase dum jazz antigo, melancólico, como os anos trinta deviam ser.
Mudou para um blues.
Ela foi morar na França com minha filha, Mônica. Mônica… ainda lembro do seu rosto redondo espantado presenciando nossas brigas. Não havia o que fazer, o que pensar, a pobrezinha não sabia de que lado ficava.
Não havia como entender as complexas e infantis relações entre adultos.
O que deu errado, Martha? Meus fracassados romances que você tanto admirava na adolescência não mais pagavam nossas contas? A vida desregrada e as dívidas não tinham mais graça? Sua yuppie desgraçada, prostituta do sistema!
E do outro lado, Mônica.
Lembro das vezes em que a levava no banco da frente, fingindo que ela dirigia um carro parado, de como ela arregalava os olhos ao saber que Cinderela dormiu por anos até que veio um cara do nada e a acordou. Seu sorriso era a minha vida, meu ar, meu chão…
…Sorriso…
…Sorriso…
…Sorriso…
… Bourbon…
Ela está sentada ali há alguns minutos, seus olhos movimentando-se sem parar, procurando? Nah, esquece. Mas– deixa eu olhar essa foto outra vez. Deus do céu… será?
Bebo de um gole e crio coragem. Levanto-me apanhando o paletó na cadeira da minha acompanhante inexistente, abasteço um copo e aproximo-me dela. É inacreditável…
Olho-a por alguns segundos. Ela, por sua vez, passa a me encarar como se perguntasse: “ O que esse velho faz aí parado olhando pra mim?”
“… Oi… é que eu… estava ali e…”, Deus, o que estou fazendo?
“Oi…” Ela cumprimenta, eu já me sentando em sua mesa.
“Você não parece ser daqui, é de fora?” TEM que ser ela, tem que ser…
“sim. Acabei de chegar de Versailles.” Versailles, Martha!
Minha garganta seca repentinamente e, como por instinto, dou um gole grande no meu uísque. Ficamos nos olhando, um silêncio incomodo e estranho. Meio desajeitado, tento acabar com isso.
“Você está aqui a trabalho?”, pergunto.
“Não… eu estou procurando por uma pessoa.”
“ Nossa, moça, eu vou parecer um pouco intrometido, mas, é porque eu não converso com alguém há muito tempo e, se você não se incomodar, eu posso ajudá-la. Quem exatamente seria essa pessoa?”
“ é o meu… pai…”
Foi como uma paulada. A bebida já me fazia tremer os membros, mas dessa vez eu tremia MESMO.
“O senhor está bem?”
Minha filha… Há quanto tempo… tenho tanto pra te dizer e… Não, agora não…
“ sim… desculpe, er… qual é mesmo o nome desse seu pai?”
Minha mão procura por uma garrafa, assim que ouço aquela boca linda pronunciar meu nome. Oh, Deus…
“ e, e o que você sabe sobre ele?”
“Olha, pra ser sincera, eu me lembro muito pouco dele e não sei de muita coisa, só deste… bar. A minha mãe insistiu demais para que eu não viesse procurá-lo, porque ele era um bêbado fracassado, que nunca se importou comigo, que batia nela e tinha sérios desvios sexuais.”
“…”
“Você ainda não disse se o conhece.”
“…”
Levanto-me. Eu quero vomitar, seguro com muita força um soluço incontrolável, é ela, é minha filha, eu vou me matar hoje, por Deus! Minhas mãos procuram uma garrafa.
“Senhor?”
“Leia seus livros, senhorita. Lá você irá achá-lo.”
“EU JÁ LI, PAI!”
Eu olhava a maçaneta da porta, aos soluços.