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Dia 8 de Março: lutas e celebração do feminino

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De modo geral, o Dia Internacional das Mulheres inspira nas pessoas, homens e mulheres, duas atitudes típicas em relação a essa histórica data. De um lado, há os que, com unânime entusiasmo, optam por fazer deste dia uma ocasião simbólica e sugestiva para presentear às mulheres com pequenos brindes e gestos atenciosos: cartões postais, poemas e flores, muitas flores. As mais politizadas (os) e socialmente comprometidas (os) preferem, por sua vez, enfatizam a história e a memória de lutas, com as opressões e discriminações persistentes e as conquistas alcançadas ao longo de quase um século e meio de  luta das mulheres por igualdade, dignidade e autonomia.

De fato, essa última atitude, ainda que cause enfado em alguns, é indispensável para reavivar o fato chocante de que a ideia das mulheres como sujeito de direitos é algo extremamente recente em nossas sociedades. Durantes séculos, as mulheres não passaram de objetos de troca – propriedade dos pais e, posteriormente, dos maridos; sem direito à educação formal, ao trabalho fora de casa ou a direitos sociais e trabalhistas básicos, ao voto, ao divórcio e ao acesso a métodos contraceptivos. Tratadas como adereços e apêndices da vida social e seres à sombra dos direitos, as mulheres foram, durante muito tempo, confinadas nos espaços e nas atividades concebidos e tratados como de menor valor e de importância para a vida política, cultural e econômica.

No toca a questão de gênero e das mulheres, o Brasil é um país extremamente contraditório. O país que confia às mulheres os mais altos e visíveis cargos de poder e de condução da nação, como a Presidência da República e o de ministro do Supremo Tribunal Federal, é o mesmo país que lidera o ranking da desigualdade de gênero na América do Sul, de acordo com o relatório Global Gender Gap de 2011 e que, segundo pesquisa do DataSenado de 2007, apenas 8% das mulheres sentem-se respeitadas de fato.

Este sentimento de desrespeito não é fruto apenas da banalização e exploração publicitárias do corpo feminino, que reduz e instrumentaliza o corpo e o ser mulher, reiterada e exclusivamente, à mera condição de objeto de desejo dos olhos e dos apetites masculinos. Nem se resolve totalmente pelo status legal de igualdade obtido na esfera jurídica. Trata-se de dificuldades e obstáculos concretos e enraizados na vida cotidiana e nas instituições, enfrentados e vivenciados por boa parte das mulheres no que se refere a sua inserção e participação paritária na vida da sociedade: as desigualdades de salários[i] e de exigências profissionais, a desproporção de cargos de chefia, o desequilíbrio na divisão das tarefas e responsabilidades em relação à vida doméstica e aos cuidados com os filhos, o cerceamento da sexualidade feminina e da autodeterminação dos seus corpos, relacionamentos abusivos e de sujeição, etc.. Tais obstáculos sociais não deixam de existir por conta de propagandas e homenagens televisivas que exaltam o papel da mulher na sociedade e na vida em geral.

Aliás, são nos aspectos sutis e desinteressados em que repousam algumas das estratégias de dominação mais vorazes e eficazes. Por exemplo, o simbolismo e a gentileza dos presentes, das flores e chocolates por ocasião do Dia das Mulheres carregam, com efeito, o reforço de alguns estereótipos e pré-noções responsáveis por docilizar as mulheres como seres presos à sensibilidade, ao detalhe e ao sentimentalismo, alijando-as das disposições mais afeiçoadas aos espaços e atividades identificados com mais racionais e sistemáticos. Além do mais, as flores e os cartõezinhos não combatem a situação persistente de desigualdade e desvantagem social das mulheres em relação aos homens nem as brindam com maior reconhecimento e respeito.

Outro discurso comum nesse período de celebração da mulher, bastante repisado nas matérias jornalísticas e publicitárias, é a exaltação de sua plasticidade e papel na sociedade contemporânea. Há aqui, por assim dizer, mais uma das formas sutis pela qual a dominação não se mostra como tal.

Como se fosse mais um desses modernos aparelhos tecnológicos recém lançados, diz-se que a mulher moderna é multifuncional. Na empresa, vestida em seu terninho preto e de cabelo preso, ela dá ordens e preside, com confiança e autoridade, reuniões. Em casa, no entanto, ela não se envergonha de vestir o avental, de ser a Amélia do lar, de ser para os filhos a mãe zelosa e incondicional e ao marido a mais prestativa das mulheres.

A sociedade, em sua hipocrisia e astúcia, exalta e elogia a plasticidade da mulher como a prova de sua virtude e de sua importância social. Mas, na verdade, é exatamente por meio desse estratagema hábil que a dominação se atualiza sobre nova condição lograda pelas mulheres nas sociedades contemporâneas. E, assim, legitima-se não somente a divisão sexual moderna do trabalho, impondo às mulheres a “dupla jornada”, como também se assegura a equivalência entre resquícios do patriarcalismo e a própria ideia de mulher moderna.

Se é verdadeiro o fato de que todas as conquistas obtidas pela luta das mulheres no último século não resultaram necessariamente na eliminação das desigualdades, na hierarquia dos sexos que ainda rege e organiza espaços estratégicos da sociedade, sobretudo os âmbitos das decisões políticas e econômicas, isto não significa que não haja o que celebrar. Afinal de contas, de todas as lutas e revoluções, não foram precisamente as lutas e mobilizações das mulheres que lograram os melhores resultados? Não à toa, historiadores como Eric Hobsbawm e Perry Anderson não hesitam em creditar ao movimento das mulheres a maior transformação social e cultural do século XX. A transformação da violência doméstica em uma questão pública, respaldada em legislações nacionais e internacionais, é prova do poder e do alcance dessa transformação social promovida pela incansável luta das mulheres.

Evidente que há ainda muito pelo que lutar. Muito por se fazer e conquistar. Mas, sob um olhar comparativo e retroativo, os ganhos históricos, políticos e sociais das mulheres são inegáveis! As mulheres e sua história política tem muito o que ensinar  a todos os movimentos políticos e sociais contemporâneos.

Por último, cumpre destacar, que o Dia das Mulheres não é apenas das mulheres. Se esta é uma data de celebração e reflexão da luta pela igualdade de gênero, uma luta, aliás, de todos e de todos os dias, e, se, como sustenta Pierre Bourdieu, a “visão androcêntrica do mundo é o senso comum de nosso mundo”. Então, devemos enxergar nela um lugar especial para todas aquelas e aqueles artesãos dos seus corpos, que jogam com o feminino e sentem-se como mulheres e femininas à sua maneira, porque como tais sofrem o peso de viver o feminino em sociedades nas quais este último é constante e sistematicamente alvo de deslegitimação e depreciação.

Portanto, em certo sentido, hoje também é o dia das Travestis, Transgêneros e Transexuais, destes artífices do próprio corpo que reinventam a si e criam novos modos de feminilização dos corpos, dos prazeres e da vida. O Dia Internacional das Mulheres significa ao mesmo tempo a celebração das conquistas reivindicadas e a luta do(s) feminino(s) contra a visão androcêntrica do mundo.


[i] Segundo o Censo de 2010, as desigualdades de renda entre homens e mulheres permanecem consideráveis. Em média, os homens ainda ganham 42% mais que as mulheres.

Imagem: Mulheres Protestando – Di Cavalcanti, 1941