Por Alípio de Sousa
(Sociólogo e Professor do Dep. de Ciências Sociais – UFRN)
O dia 8 de março, instituído como o Dia Internacional da Mulher, em sua origem foi criação dos movimentos feministas. Pensado como um dia de luta política para a manifestação pública dos diversos grupos feministas, com vistas a denunciar situações de opressão, desigualdades e violências vividas ainda por grande parte das mulheres nas nossas sociedades, a data vem, mais e mais, e não apenas no Brasil, transformando-se em um verdadeiro segundo Dia das Mães. Basta a observação dos discursos que circulam hoje nos jornais, rádios, tvs, nas mensagens governamentais e até de empresas privadas para que, com análise crítica, se perceba o esvaziamento do sentido político da data.
Na maior parte das mensagens, o que encontramos são retóricas morais conservadoras que, disfarçando-se em dignificação da mulher, no fundo reiteram todos os estereótipos sociais produzidos historicamente sobre o feminino, que confinam as mulheres às representações ideológicas da mulher “dedicada”, “sacrificada”, “amorosa”, “maternal”, “compreensiva”, “nutridora”. Isto é, mulher como sinônimo de “cuidadora” e que encontra na figura da “mãe” seu ideal. Como estamos na conservadora sociedade burguesa e cristã, essa mãe não pode ser senão sempre-já a “esposa” fiel ao marido e devotada aos filhos. Ideologia do casamento heterossexual como destino para todas as mulheres e ideologia da maternidade como realização máxima da mulher.
Assim, com jornais ofertando rosas impressas em suas capas, governadores/as, prefeitos/as, comunicadores/as e também empresários/as (que não perdem a chance de fazer a propagando de seus negócios) fazendo seus delicodoces e manteigueiros discursos sobre “o valor da mulher”, o que, de fato, realizam é o esvaziamento do sentido político da luta feminista pela emancipação social das mulheres. Emancipação que inclui rupturas com modelos culturais e morais impostos às mulheres que constituem estruturas, instituições e padrões de relações sociais que inferiorizam e oprimem as mulheres. Nesse sentido, as lutas feministas priorizaram sempre as bandeiras das liberdades sexuais, do fim das desigualdades entre homens e mulheres mantidas em diversos âmbitos, a luta pela legalização do aborto, por leis de proteção às mulheres contra violências praticadas no domínio doméstico ou público, por políticas públicas promotoras de novas condições para as mulheres.
A valorização conservadora da mulher que se pratica nos discursos que usurparam a cena pública do 8 de março é antifeminista. É hipócrita e ardilosa. Visa fazer crer que, hoje, por mérito das próprias mulheres “guerreiras”, “lutadoras”, mas também “sacrificadas” (a mater dolorosa cristã!), já temos um “reconhecimento do valor da mulher”: que, agora, pode ser presidente (e há aqueles que se escondem no “presidenta” para fingir maior valorização da mulher, não por autêntico feminismo radical, mas por mulherismo linguístico adulatório), governadora, prefeita, parlamentar, empresária. Mesmo quando algumas delas, ocupantes desses postos, nada tenham de feministas ou experimentem, em suas histórias pessoais, algo que se possa chamar de emancipação feminina. Do lar, fabricadas por concepções antiemancipatórias que vigoram nas famílias e na sociedade em geral – o que inclui retrógadas crenças religiosas e alienantes valores morais –, vão para a esfera pública (governar, dirigir, representar etc.) como meras replicadoras de ideias e práticas que constituem não apenas as bases fundamentais de estruturas de opressão e alienação das mulheres em nossas sociedades, mas igualmente de estruturas econômicas e de poder, além de instituições culturais, que mantêm a sociedade de desigualdades e violências que conhecemos.
Oxalá os grupos feministas consigam retomar a palavra e a cena pública no 8 de março e reinstituam o sentido de luta política da data! O que interessa não apenas às mulheres mas a todos/as que lutam por transformações radicais de estruturas, instituições, relações e práticas sociais, prevalentes em nossas sociedades, que perpetuam a dominação masculina, hierarquias infundadas de gênero, a ideologia da heterossexualidade obrigatória, a homofobia e igualmente desigualdades econômico-sociais e mecanismos de poder para privilégio de poucos e miséria e sofrimento de muitos.