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Catequese no Estado laico

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Da Teia Neuronial – O governo de Ilhéus, Bahia, instaurou uma lei municipal que obriga os alunos das escolas públicas do município a rezar o Pai Nosso antes das aulas. Os 13 vereadores da cidade aprovaram a “Lei do Pai Nosso” por unanimidade e o prefeito a sancionou no dia 12 de dezembro de 2011. A ideia dessa norma no mínimo controversa saiu da cabeça do Vereador Alzimário Belmonte (PP), evangélico da Igreja Batista que, como tantos políticos incompetentes Brasil afora, não compreende o que é Estado laico.

Essa tentativa de cristianizar o Estado brasileiro não é a primeira nem a mais séria. Felizmente, vivemos numa época em que a imposição teocraticista encontra forte resistência da sociedade civil secularista. Neste sentido, a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA) ingressou no Ministério Público da Bahia contra a lei, argumentando sua inconstitucionalidade, tendo em vista que viola a liberdade de crença dos estudantes.

Belmonte acredita que a oração na sala de aula contribui para a diminuição da violência na escola.

Alunos ameaçam e violentam professores, a escola se tornou um espaço perigoso. A situação pode melhorar se implementamos ações que façam a juventude refletir. Precisamos despertar os jovens para a importância da oração na vida do ser humano.

O vereador se equivoca redondamente ao pensar que o ato de orar pode amansar as crianças, sem ter feito nenhuma pesquisa que indique provas de sua afirmação. Repetindo a velha cantilena de que o ser humano só pode ter moralidade se acreditar em Deus (suposta única fonte dos valores morais), ignora o fato de que, na história humana, a religião foi ostensivamente usada para justificar todo tipo de violência, intolerância e guerra. Assume preconceituosamente que a prática dos dogmas religiosos cristãos implica necessariamente em menos conflito.

Outra ideia controversa de Belmonte é a de que a oração serve para refletir. A oração, como tantos mantras e técnicas de meditação, não tem o objetivo de levar à reflexão, mas de suspender o pensamento crítico. A oração do Pai Nosso é um texto decorado que, repetido à exaustão, rapidamente deixa de ter sentido para uma criança. Mesmo considerando que a oração do Pai Nosso tenha algum potencial de refrear os impulsos do indivíduo, não há garantia de que funcione sem que haja uma diretriz pedagógica que inspire a cultura da tolerância e da paz.

Não estou induzindo ninguém a uma religião, estou apenas sugerindo uma oração que é universal.

É nesse trecho de suas declarações que o vereador mostra total desconhecimento do significado da palavra laicidade. Dizer que o Pai Nosso é uma oração universal é desconhecer a humanidade e a realidade de que existem centenas de culturas e religiões diferentes ao redor do mundo, dezenas no Brasil, com diferentes repertórios, diversas ideias a respeito do que é oração ou mesmo a ausência de qualquer conceito semelhante.

Ele alega estar “sugerindo” e não “induzindo”, porém a lei é bem clara a respeito da obrigatoriedade da medida. Mesmo que não estivesse obrigando, quando o Estado “sugere” que uma determinada oração seja praticada, ele está se posicionando a respeito da religião que considera a mais adequada para o povo brasileiro. Deixa de levar em consideração muitos pais que não desejam ter seus filhos catequizados pela escola e corre o risco de provocar situações de exclusão e bullying.

Lidiney Campos, secretária de Educação do município, afirma a seguinte contradição:

Lei existe para ser cumprida, mas com relação a essa, não estamos obrigando ninguém. Não há vigilância ou punição por parte da prefeitura. Entendemos que o Estado é laico, mas muitos dos nossos professores já têm a prática de fazerem uma oração em sala de aula, de ler salmos e textos bíblicos. Nada mudará com essa lei.

Caminhando no movimento contrário ao da história contemporânea, o governo de Ilhéus, ao invés de laicizar as instituições de ensino e dar uma verdadeira liberdade religiosa para as crianças, está sancionando uma prática que deveria ser abolida e não incentivada. Afinal, embora não obrigue e não preveja sanções para o descumprimento da lei, ela serve como forma de constranger os professores a manterem ou darem início a uma prática de cristianização dos alunos, além de constranger os estudantes a participarem de um rito, sob pena de se sentirem excluídos. As crianças, reais interessadas e atingidas por essa política, não terão grande chance de escolha, pois quem decide se vão orar ou não são os professores (grande parte dos quais é cristã e, ao que tudo indica, favorável à prática da oração na escola).

A secretária, compartilhando da forma de pensar do Vereador Belmonte, demonstra completa ignorância sobre a relação entre religião, liberdade e Estado laico. Afirma disparatadamente que “todo ser humano deve ter uma religião”. Essa afirmação contraria frontalmente a noção constitucional de liberdade religiosa. Esta não diz somente que um indivíduo pode escolher qualquer religião, mas também que alguém tem o direito de não ter nenhuma crença nem pertencer a igreja nenhuma.

Ademais, ao pretender impor um rito cristão (ou seja, de uma doutrina específica) sob o argumento de que a religião é necessária ao ser humano, ignora a diversidade de culto da população, sujeita à velha catequização outrora praticada pela Igreja Católica e hoje pretendida por um Estado que deveria ser laico.


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