O novo filme do consagrado diretor Martin Scorsese é uma fábula que homenageia a história do cinema. E esta homenagem já começa no plano-sequência inicial, a partir da escolha da locação onde a ação se desenrola: uma estação de trem, se referindo assim ao famoso filme dos irmãos Lumière e o marco do início do cinema[1], A Chegada do Trem na Estação (L’arrivée d’un train à La Ciotat, 1895). Mas as referências não param por aí. E são muitas, o que torna o filme uma declaração de amor à sétima arte e uma aula de cinema para as novas gerações.
Com 11 indicações ao Oscar deste ano, o filme conta a estória de Hugo (Asa Butterfield), um garoto abandonado que tem obsessão em consertar coisas, que vive numa estação de trem de Paris cuidando do relógio da estação e rouba peças para o autômato que seu pai (Jude Law) havia encontrado e que tentava consertar antes de morrer. No entanto, ele é surpreendido tentando roubar peças numa loja de brinquedos, mas sem saber a verdadeira identidade do dono (Ben Kingsley), identidade esta que fará sua vida solitária se tornar uma aventura que redescobre o cinema ao lado de sua única amiga Isabelle (Chloë Grace Moretz).
A invenção de Hugo Cabret é a invenção do cinema, de uma máquina de ilusões e sonhos, desacreditado por seus próprios precursores, a algo que hoje faz parte da vida moderna, ou melhor, uma arte (ou uma indústria) que reinventou a vida moderna. O detalhe em que o protagonista observa os personagens pelas frestas do relógio da estação, é, em si mesmo, uma referência ao cinema. Afinal, ao assistir um filme somos transportados a diversas épocas, ao passado, ao presente e até mesmo ao futuro. E, no caso de Hugo, a uma certa ingenuidade dos primeiros filmes, mostradas aqui por situações banais e cômicas dos personagens secundários. Além de vermos referências a Charlie Chaplin (o flerte do desajeitado guarda, interpretado por Sacha Baron Cohen, com a florista), há um medley com cenas de Intolerância (1916) de David Griffith, A Caixa de Pandora, de Georg Wilhelm Pabst, Viagem à Lua (1902) de Georges Méliès (este último sendo o ponto central da trama) etc.
Abusando da profundidade de campo, Scorsese, com as cores e a iluminação do filme, dá um intenso tom de fábula, e, em sua montagem, faz comparar Paris com as inúmeras engrenagens do relógio da estação, numa das cenas mais deslumbrantes. Com isso, com todo o maquinário dos relógios e a visão da estação que parece uma fábrica ao longe, o experiente diretor nos faz lembrar que o cinema também é uma indústria. O que me faz lembrar outra coisa: como indústria do entretenimento, há certas exigências impostas pelo mercado. Pois, embora sejam atores interpretando personagens franceses, os mesmos falam inglês, o que não poderia deixar de ser, afinal, o diretor está ciente dos mecanismos financeiros por traz do cinema, e sabe que perderia o público norte-americano e o dinheiro dos investidores no seu projeto se os atores falassem francês (o que, por outro lado, daria mais veracidade e seria mais honesto com a história do cinema). Entretanto, devemos também lembrar que o filme é uma fábula, ou seja, a verossimilhança não é, necessariamente, tão importante neste caso.
E ainda há a escolha de Scorsese pelo 3D estereoscópico, o que, além de simplesmente visar o lucro nas bilheterias, possa estar fazendo com isso uma referência ao susto que levou o público ao assistir a exibição do filme dos Lumière ao achar que o trem do filme iria sair da tela em sua direção, e também uma alusão aos próprios filmes de Méliès, além de mostrar o cinema como um processo constante de invenção de novas tecnologias “ilusionistas” que tentam buscar uma imersão plena do público.
Hugo (EUA , 2011 – 126 minutos)
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: John Logan, Brian Selznick (livro)
Elenco: Asa Butterfield, Ben Kingsley, Chloë Moretz, Sacha Baron Cohen, Helen McCrory, Christopher Lee, Michael Stuhlbarg, Emily Mortimer, Jude Law, Richard Griffiths, Frances de la Tour, Ray Winstone
[1] Marcel Martin, em seu livro A Linguagem Cinematográfica, nos faz lembrar que o cinema não saiu pronto da mente dos Lumière, mas a descoberta fundamental destes “consiste no aperfeiçoamento do dispositivo de condução intermitente da película, que tornou possível o cinematógrafo a partir das invenções dos pioneiros, particularmente Étienne Jules Marey (cronofotógrafo, 1888) e Thomas Edison (cinetoscópio, 1891)”.