O último dia 23 de janeiro marcou os dez anos da morte de um dos maiores nomes da Sociologia e das Ciências Sociais do século XX, o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002).
Não seria exagero afirmar que Bourdieu foi, dentre os cientistas sociais da segunda metade do século XX, um dos raros a alcançar aquele “status privilegiado” que converte um autor na figura de um clássico. A criatividade de seu trabalho, o vigor de sua contribuição e o alcance de sua influência alçaram-no à condição dum verdadeiro clássico das Ciências Sociais, a quem, como a Marx, Durkheim e Weber, os cientistas sociais, profissionais ou aspirantes, por muito tempo terão de recorrer e de reler em busca de inspiração e alternativa de repostas para as novas questões que defrontarão a disciplina.
Bourdieu conduziu a feitura de sua obra com o destemor e o ímpeto desbravador típicos dos espíritos mais inquietos e incansáveis. Seu esforço e engenho abriram diversas frentes de trabalho e novas perspectivas para o estudo sociológico. Sua obra intelectual é uma verdadeira expedição sobre as mais diversas regiões do mundo social: as relações de parentesco em comunidades camponesas, a escola, as classes sociais, os gostos e o consumo, a criação artística e literária, a dominação masculina, a alta função pública, a carreira universitária, o sofrimento social, a televisão, entre outras.
Sem privilegiar ou escolher temas segundo sua “nobreza intelectual”, Bourdieu não apenas alargou a agenda de pesquisa da ciência social como também incluiu nela temas considerados menores, tidos como de pouco valor científico à época, como o celibato forçado dos camponeses em Béarn – sua aldeia natal –, a alta-costura ou o mercado imobiliário francês.
Foi um sociólogo intelectual e politicamente combativo, e por vezes, até mesmo impiedoso com seus adversários. Intelectuais, políticos e jornalistas padeceram amargamente em sua pena e discurso afiado. Ao pesquisador impertinente e agressivo, que chamava seus interlocutores pelo nome e, sem receio ou gentileza, apontava-lhes as fraquezas e desacordos, somou-se, sobretudo nos anos noventa, o intelectual engajado. No âmbito da Política e do debate público, de suas armas críticas não escaparam a mídia, os fast thinkers, os governos de esquerda da Europa e a globalização. Em meio a greves, programas de debate, câmeras, microfones e gravadores, Bourdieu empunhou megafones com entusiasmo e emprestou sua voz, nome e sociologia aos movimentos sociais e de trabalhadores, militando contra as mazelas do agravamento do desemprego e da exclusão social provocadas pela mundialização neoliberal, situando-se, como ele mesmo dizia, à “esquerda da esquerda”. As vicéras da miséria e do sofrimento social provocados pelo neoliberalismo foram expostas e dissecadas nesta obra formidável e monumental conduzida por Bourdieu e seus colegas de pesquisa, A Miséria do Mundo.
Se há em Bourdieu, em sua obra e pensamento, um impulso básico, creio que este seja o desnudamento da multiplicidade de relações e de modos de dominação que estruturam e movem a sociedade, as instituições e nossas formas de agir e pensar. A crítica da dominação ‒ em suas mais variadas formas, modos e recursos ‒ constitui, por assim dizer, um dos pontos de partida essencial de todo o empreendimento sociológico de Bourdieu; da dominação de classe à dominação de gênero, do recurso ao econômico ao simbólico.
De fato, Bourdieu legou-nos uma nova visão sobre a dominação e a desigualdade. Com ele, aprendemos que a dominação social implica tanto relações de força como relações de sentido, e que ela se sustenta tanto na desigualdade de recursos e força quanto no desconhecimento da arbitrariedade que a funda. O poder exerce-se ocultando-se. Sem um trabalho coletivo de dissimulação, legitimação e reconhecimento, a dominação não se realiza na prática, isto é, ela não toma o coração e a mente das pessoas se as relações de poder e dominação não forem vistas e vividas como relações naturais e legítimas, a ponto dos indivíduos enxergarem sua própria condição dominada como produto da “ordem natural das coisas”.
Bourdieu foi o cartógrafo das distintas formas assumidas pelas relações de dominação e de assimetria nas sociedades contemporâneas. Com vivacidade empírica e rigor teórico, ele explicitou como essas ditas relações não se limitam, em sua vigência e organização, às diferenças econômicas nem mesmo aos postos de poder oficiais. Ao lado ou embutido nas diferenças de capital econômico e político, Bourdieu trouxe à luz a estruturação e reprodução das relações de dominação e assimetria por meio das diferenças entre credenciais educativas e de origem familiar (capital cultural), do escopo dos laços e contatos sociais efetivos (capital social) e de status de prestígio e reconhecimento (capital simbólico) em campos sociais variados.
O sociólogo francês perseguiu e desmontou objetivamente as diversas “illusio” que animam e consagram as crenças e representações dominantes na sociedade moderna como se fossem universais, eternas e naturais em vez de particulares, históricas e sociais.
Assim, a ideologia da igualdade de oportunidades e do êxito meritocrático, esta “sociodiceia dos próprios privilegiados”, ou a ideologia do gosto refinado e estético enquanto “dons naturais e extraordinários de alguns indivíduos” foram desvendadas em sua opacidade e “violência simbólica” em obras como A Reprodução e A Distinção. Foram, portanto, reveladas naquilo que ocultam: as condições sociais arbitrárias e as relações de dominação operantes e constituintes que as sustentam, as verdadeiras molas mestras da força de adesão e da eficácia prática de tais crenças e ideologias.
É esta ciência social ao mesmo tempo crítica, combativa e rigorosa, praticada segundo um equilíbrio vivo e inseparável entre teoria e investigação empírica, que Pierre Bourdieu nos legou. Sua obra continua a ser um convite, ou melhor, um desafio insistente para continuar e levar ao limite esse legado. Portanto, de modo algum, devemos permitir que o silêncio abata-se sobre sua obra, contribuições e insuficiências. Devemos, ao contrário, continuar a recordar, reinventando Bourdieu e sua sociologia em vez de apenas homenageá-la ou dar-lhe um lugar, merecido, no museu dos grandes cientistas sociais.
Se durante muito tempo a leitura de Bourdieu significou um convite a ler os clássicos da Sociologia, hoje a obra do sociólogo se tornou um clássico por excelência. E, como tal, sua obra e sociologia desfrutam daquela fertilidade viva, infinda, que distingue qualitativamente os clássicos das Ciências Sociais e que alimenta o olhar contemporâneo dessas ciências sobre o tempo presente e suas questões.