Por Félix Maranganha
(Félix Maranganha é poeta, escritor, linguista, budista e sinuquista)
Muitos escritores, principalmente dentre os que conheço, demonstram um medo quase abissal de demonstrar que são humanos, que possuem gostos e que podem ser gente comum. A maioria deles não consegue simplesmente dizer “não gosto de Machado de Assis“, pois o ritual da execração das Academias de Letras pode atingi-los a qualquer momento, basta que manifestem que “Mário de Andrade não os agrada“.
Às vezes sou tratado como uma criatura anormal vinda dos estratos mais baixos do Tártaro por falar em alto e bom tom que não suporto ler os romances de Chico Buarque, que não me agrado muito do estilo da Tropicália, que não me baixa pelo esôfago a Bossa Nova e que, em um universo que me permite escolher entre Aluísio de Azevedo e J.K. Rowling, prefiro mil vezes ficar com a inglesa na cama que com o brasileiro na praça. É que parece existir, no mundo da escrita, uma espécie de Espiral do Silêncio.
A Espiral do Silêncio foi primeiramente pensada pela cientista alemã Elisabeth Noelle-Neumann, daí alguns acadêmicos chamarem também de Efeito Noelle-Neumann. Segundo essa teoria, quanto mais uma determinada tendência ou opinião se espalha em determinado mundo social, mais as tendências e opiniões contrárias serão expurgadas sem muito raciocínio, e quanto mais uma outra tendência ou opinião for dominada pela maioria, menos ela será manifestada. É o que ocorre com o Politicamente Correto: quanto mais aceita sem questionamento é a Política de Cotas para as Universidades, maiores as chances de que seu contrário não seja manifesto, por mais que ele seja mais coerente, e sob pena de ridicularização, expurgação e punição. Esse processo ocorre porque, apesar de existirem representantes minoritários de determinada opinião ou tendência, haverá uma força que levará gradativamente a que se calem a respeito de suas próprias ideias. E quando parte desses representantes minoritários se cala, suas opiniões e tendências diminuem ainda mais, ao ponto de acabar por silenciar-se por completo.
Conheço alguns escritores, cujos textos são ótimos, mas que assistem o Big Brother, brincam carnaval, acompanham futebol, leem a Caras ou ouvem forró estilizado. Eles, porém, preferem não manifestar suas preferências para não serem excluídos do mundo dos escritores eruditos. Muitos parecem ter receio de ser taxados como incultos, vulgos, dispersos, alienados ou coisas do tipo, como se uma mente perfeitamente esclarecida fosse capaz de sucumbir diante da calamidade triunfal rasteira que a mídia representa. Alguns evitam falar de temas que lhes agradam, como romancistas que tentam a todo custo eliminar o engajamento ideológico de suas obras, mesmo que fossem mais felizes fazendo isso. O escritor está deixando de ler e escrever por prazer, está abandonando o ler e escrever por gosto, e está se tornando um ler e escrever por obrigação, está caindo nas malhas do ler e escrever pela satisfação devida ao outro.
Muitos escritores odeiam ler Machado de Assis, eu mesmo sou um deles. Vez por outra eu leio. Gosto de uma coisa aqui e ali, uma imagem construída, um recurso narrativo bem usado, mas a verdade é que não suporto ler Machado de Assis. Apenas um livro dele me prendeu, em toda a minha vida: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Li Dom Casmurro por obrigação, alguns de seus contos só terminei porque tinham algo de interessante, outros simplesmente pulei após ler um ou dos parágrafos maçantes e sem emoção. Helena, então! Pulei fora! Outro escritor que não suporto ler é José de Alencar. Sempre que abro um de seus livros para ler, se não tiver outro jeito senão conclui-lo, encontro um deus qualquer ao qual pedir urgente o fim daquele tormento. Aliás, tenho dificuldades emocionais para ler a maior parte da produção literária nacional, seja em poesia, seja em narrativa, seja em teatro.
Por outro lado, por mais averso com Machado de Assis que seja, eu suporto ler Shakespeare e Voltaire. Digamos que o estilo deles, tanto no original como nas traduções, me prende. Gosto de ler best sellers bem escritos: Morris West, Mario Puzo, Michael Crichton, J.K. Rowling, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Rick Riordan, J.R.R. Tolkien, Arthur C. Clarke etc. Não leio e gosto simplesmente porque está na moda, mas porque são bons. Eu mesmo abandonei uma porrada de livros de Paulo Coelho, não consegui ler além do primeiro capítulo de nenhum livro de Stephanie Meyer, e há anos que me desfiz de Dan Brown sem nem mesmo terminar a terceira página. Adoro ler quadrinhos, desde os mais simples de Maurício de Souza, até os mais elaborados como Alan Moore e Frank Miller. Amo, de paixão, a poesia popular dos repentistas e dos cantores, como Jessier Quirino, Luiz Gonzaga e Zé Limeira.
Eu não gosto de ler Cortázar, mesmo que a maioria dos meus amigos só faltem lamber a sola de suas sandálias. Não suporto uma página que seja de Raul Pompéia. Tenho ânsias de vômito quando leio Júlio Diniz e Camilo Castelo Branco. Gabriel García Márquez só passei a gostar depois que tentei ler Cem Anos de Solidão pela terceira vez, e, mesmo assim, não alcancei o fim do livro ainda. Se um torturador me desse Victor Hugo e Gustave Flaubert para ler, eu trocaria por um choque nos testículos com todo o prazer do mundo. E tenho uma crença pessoal de que Honoré de Balzac é ótimo para afastar pernilongos, basta abrir suas páginas e recitar qualquer capítulo que ele tenha escrito. Enfim, tenho gostos, preferências, e não preciso fingir que gosto de um escritor para ser aceito por outros escritores. Nem mesmo preciso ser aceito por outros escritores para saber escrever bem. Quem espera aceitação é gente insegura precisando urgente de cuidados psiquiátricos.
Que mal há em admitir que não gosta de determinadas leituras? que gosta de outras leituras? que tem uma certa neutralidade com algumas outras leituras? Qual o problema em perceber que a leitura e a escrita vêm porque se gosta de ler e de escrever? A quem devo satisfação ao dizer que TODA a obra de um autor deve ser reverenciada? Eu gosto de ler Bráulio Tavares, mas não todos os livros. Gosto de Frank Herbert, mas não todos os livros. Adoro ler J.R.R. Tolkien, mas não todos os livros. Odeio ler Machado de Assis, mas não todos os livros. Não consigo gostar de José de Alencar, mas gostei de ler O Guarani. Eu tenho cólicas para a maior parte das obras clássicas gregas, mas me agradei de ler a poesia de Safo de Lesbos.
Vez por outra assisto um episódio de Malhação. Gosto de ler e escrever sobre religião. Me agrado por discussões infrutíferas sobre filosofia nos fóruns de internet. Às vezes me pego repetindo um hit fraco na mente sem querer (mas deixei de ter neuras com isso faz tempo). Adoro ler a Bíblia. Gosto dos quadrinhos da Disney. Tiro boa parte das minhas lições de desenhos animados e animações 3D.
Sou normal. Alguns escritores perceberam há tempos que são normais. Outros há alguns anos deixaram de neuras com sua própria imagem enquanto escritores, e abandonaram o falso eruditismo para se amostrarem por aí. A maioria, porém, continua dizendo que gosta de clássicos, abusam dos cânones que eles mesmos odeiam, e passam a maior parte do tempo debatendo o valor estético de um Shakespeare ou de um Racine sem nem mesmo se ligarem que existem bons escritores e poetas do nosso lado, como Clinton Davisson Fialho e Jairo Cézar. Enfim, vai entender! Deve ser trauma da escola.