Por Ricardo Vilar[1]
Atualmente, ao perambular pela cidade nos deparamos com uma infinidade de anúncios de imóveis à venda. Panfletos nos são entregues aos montes como promessas de futuro repleto de conforto e bem viver. No século XXI, a dinâmica da vida urbana nos bombardeia de informações, mas também de projetos e ambições, sobretudo os pessoais, individuais.
Experiências urbanas são distintas e marcadas de valores simbólicos, mas também de elementos materiais, que se associam a práticas que podem ser percebidas historicamente. Em Natal, desde a instauração da Primeira República, é possível notar como a moradia e os modos de viver urbano indicavam posições ocupadas na sociedade. Nesse caso, a construção e posterior processo de ocupação de um espaço conhecido como Cidade Nova veio a atender muitos interesses, principalmente na década de 1920.
Os novos bairros da área, Tirol e Petrópolis, reuniam a possibilidade de estabelecer um bairro essencialmente residencial, articulado às maneiras de viver das elites locais da cidade. Cada vez mais, para os padrões das primeiras décadas do século XX, distanciando-se dos bairros da Cidade Alta e da Ribeira.
A noção de privacidade importava cada vez mais e o trabalho passou a ser identificado com atividades cujo universo deveria distinguir-se do privado. A rua tornava-se, então, o lugar das atividades profissionais, enquanto a casa se fazia reduto da família. A moradia moderna passava a ser, como diz Telma de Barros Correia, “destinada ao uso restrito da família nuclear […] às questões de privacidade, como a preocupação em manter os estranhos afastados do lar”.
O papel da família foi fundamental na consolidação dos espaços da cidade. Ela também atuou no sentido de conferir “respeito” e legitimidade aos ideais de habitação nesse período, bem como ajudou na construção da noção de respeitabilidade de seus moradores. Durante toda a Primeira Republica, a família foi uma constante nas propagandas dos jornais. Sua menção era uma garantia simbólica e citar “família” representava uma segurança que quase se estendia ao concreto da habitação, como se a casa e esta fossem certeza mesma dos “bons costumes”.
Num anúncio do jornal A República de 25 de maio de 1922 era oferecida uma “casa, com cômodos para família, com água, a frente de tijolos. Rua da Misericórdia, 22”. Em outra, do mesmo jornal, “vende-se casa […] com cômodos para família”. Ainda em jornal do mesmo ano, vendia-se “uma boa casa com bons cômodos, para família, contendo luz elétrica e água […]”. E, para o indivíduo que pudesse comprar à vista, vendia-se “uma casa de tijolo, para família, a tratar na Avenida Jundiay”.
Habitar na Cidade Nova seria garantia tanto de boa localização e satisfação, quanto significaria desfrutar de uma área alardeada como mais limpa, higiênica, bela e “moderna”. Muito comum a utilização do estilo Eclético, que permitia a identidade própria do lar, além de diferenciar uma construção nova de uma habitação do século XIX.
Petrópolis e Tirol, como sonhos das elites “modernas”, abrigando uma série de novas significações no que se refere à moradia, à saúde e à beleza, constituíam-se como locais privilegiados das transformações pelas quais passou a habitação. A cidade não estava mais somente “comprimida entre a Ribeira e a Cidade Alta”, como fora dito por Alberto Maranhão à Câmara Cascudo em 1940. Uma propaganda de 1922 caracteriza bem os desejos da época ao citar “bom terreno em lugar aprazível […] quase toda a frente murada […] cuja terreno presta-se para edificar uma casa moderna […] na Cidade Nova e bem perto da Praça Pedro Velho”.
O homem moderno, narcisista, segundo Richard Sennett, voltava-se cada vez mais para si e para aqueles com quem se relacionava. Os recuos frontais e laterais propostos pela arquitetura não surgiram à toa. Não interessava mais uma vida “conjugada” ao vizinho. Certo distanciamento garantiria mais higiene e privacidade.
Na Cidade Nova, principalmente nos anos 1920, os lotes passaram a ser mais valorizados, assim como as características das modernas habitações e os serviços que eram proporcionados ao morador. Cito integralmente uma propaganda do jornal “A República”, de maio de 1922, por seu valor em tal questão. Ela cita elementos desse sonho que é a moradia bem localizada e dentro dos padrões de uma época: “Vende-se baratíssimo uma boa casa, recentemente construída, à Avenida Potengy, com sala de visita, de entrada, três ótimos quartos com janelas, sala de jantar, despensa, cozinha, banheiro e aparelho sanitário. É quase toda alpendrada, com bastante terreno e algumas fruteiras; muito próxima da Praça Pedro Velho e, portanto, na linha de bondes de Petrópolis.
Século XXI, em época de franca e crescente especulação imobiliária, não sabemos exatamente os rumos da nossa cidade. Ficamos atordoados entre os limites da realidade de nossa cidade. À medida em que a vida urbana se desenvolve, com ela nos acompanham os desejos de viver bem. Infelizmente, esta não tem sido para todos. Por vezes, embarcamos até na artificialidade dos anúncios atuais. Mas, uma coisa é certa: o espaço urbano é ainda objeto de intensas disputas.
[1] Ricardo Vilar. Professor de História e Mestre em História pela UFRN.