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A Copa das violações

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A generalizada euforia que veio logo após o anúncio de Natal como sede da Copa de 2014 trouxe, naturalmente, consequências das mais variadas, dentre as quais as conjecturas demasiadamente otimistas em relação às pretensas melhorias quanto à infraestrutura da cidade e, como era de se esperar, as patéticas pelejas fratricidas entre nossos agentes políticos – que o diga certo deputado menudo – para que lhes fosse atribuída a desejada paternidade da criança. Diferentemente, as naturais e conhecidas consequências nefastas advindas do processo de instauração de eventos desse porte foram previsível e escancaradamente dadas por inexistentes por nossa classe política e pela imprensa mainstream que, em pleno século XXI, insiste na vergonhosa tarefa em manter incólumes as feudais e estruturais relações de suserania e vassalagem com a classe política local.

Obnubiladas pela cantilena do desenvolvimento social e econômico – sempre acompanhada, obviamente, do multiuso e falacioso verbete da “geraçãodeempregoerrenda”, geralmente sacado do bolso com pompas absolutistas para justificar atrocidades governamentais de todas as matizes -, a atmosfera festiva e o clima de condescendência impediu que fossem feitas reflexões mais aprofundadas acerca das consequências da acolhida de um megaevento de tal envergadura em nossa capital. Ofuscados pela possibilidade desta grande fazenda iluminada – como pertinentemente costuma chamá-la o professor Pablo Capistrano – sediar um evento de tamanha tradição, a preocupação da classe política, da imprensa e, consequentemente, de boa parte da sociedade parece ter se resumido a apenas um ponto: Natal, enfim, desfrutaria do desenvolvimento cosmopolita que nunca teve.

Atualmente, ainda que o clima festivo esteja longe daquele de aproximadamente três anos atrás, a cantilena prossegue, só que com uma nova finalidade: esconder a vasta quantidade de desrespeitos à lei

e de violações de direitos humanos que hão de surgir com o início das obras de mobilidade executadas pelo Estado e pelo município sob o jugo da poderosa FIFA. Ainda hoje, com as obras da Arena das Dunas já iniciadas, continuam raros os debates e audiências nas instâncias públicas para o esclarecimento da população acerca dos efeitos colaterais destas obras. A total obscuridade com que decisões políticas e administrativas vem sendo tomadas somadas ao completo alijamento da população e das comunidades atingidas da participação neste processo de amadurecimento e formação vem sendo a tônica do modus operandi dos órgãos administrativos responsáveis, como a SECOPA (estado) e SEMOPI (município).

Apesar de se tratar da mais gritante obviedade, as brutais possibilidades de desalojamento arbitrário de pessoas de suas residências é uma realidade que em nenhum momento foi considerada pelas autoridades a cargo das obras. A exclusiva preocupação em alargar e construir vias e o evidente desprezo pelas questões ambientais e pela população atingida podem ser observados, antes de tudo, na elaboração do projeto inicial – que pela terceira vez consecutiva foi rechaçado pela Caixa Econômica por ter claramente sido elaborado nas coxas – para a qual não foram acionadas nenhuma das instâncias administrativas do Executivo Municipal cuja finalidade é, simplesmente, a de garantir a participação da sociedade civil nas modificações sócio-urbanísticas que lhe dizem respeito e que alimentem potenciais impactos em suas vidas. Os conselhos de Habitação – CONHABIN -, de planejamento – CONPLAM – das cidades – CONCIDADES – e demais outros foram propositalmente mantidos inertes quando deveriam ter sido acionados à exaustão, tamanhas as mudanças as quais Natal será submetida nos próximos anos.

A viabilidade econômica e social dos projetos, então, teve sua constatação, estudos e discussões restritos à atecnia política das pequenas cúpulas de gabinete que mais se preocuparam em dar consecução a interesses particulares que coletivos; nada de estudos

preambulares como os de licenciamento ambiental, nada de EIA-RIMA (Estudo e Relatório de Impacto Ambiental) e de EIV (Estudo de Impacto de Vizinhança, previsto por nosso Plano Diretor), exigências constitucionais e infraconstitucionais obrigatórias; nada de encontros, debates e audiências prévias com a população, conforme prevê a Constituição Federal, a legislação ambiental, o Plano Diretor da cidade e as resoluções do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente), mas sim a absoluta prevalência de critérios convenientemente criados em ambientes assépticos e artificializados compostos por pessoas decididas a se dedicar de alma à inglória tarefa de, a qualquer custo, levar a frente essas obras, mesmo que entre os escombros dos imóveis desapropriados restem vidas ali estabelecidas muitas vezes há mais de 40 anos de anos.

Alternativas? Existem sim, com projetos menos custosos, mais eficazes e menos impactantes para o meio ambiente e a vida das pessoas, conforme já foi pessoalmente demonstrado pela população atingida ao secretário adjunto Walter Fonseca e ao titular Sérgio Pinheiro, ambos da SEMOPI. Para a feitura do tosco e arbitrário projeto inicial, todavia, já foi gasta a quantia que lhe cabia – em nítido ato de improbidade administrativa, conforme art. 10 da lei 8429/92 -, subsistindo a má vontade dos gestores públicos em novamente abrir os cofres para idealizar um novo.

Contudo, diante da terceira negativa consecutiva da Caixa Econômica Federal em liberar recursos para as obras ante o rascunho malfeito que lhe foi entregue, contratou a Prefeitura nova consultoria para sanar as falhas apontadas pela Caixa. O serviço, que custou aproximadamente sete milhões, tem um valor certamente menor que os eventuais gastos referentes a uma eventual formulação de um projeto tecnicamente mais idôneo ao interesse público, tão requisitado pelas comunidades cujos imóveis desnecessariamente se encontram nas manchas de desapropriação do original – isso sem falar das áreas de mangue

atingidas na altura do Km 6, no Bom Pastor, e em demais localidades por onde se estendem a construção de novas vias.

Toda essa inércia não é desproposital. Servirá, pois, para que, às vésperas do evento e dos limites de prazo estipulados pela FIFA, venham alegar que não há mais tempo para modificações e tampouco para a elaboração de um novo projeto, independentemente das requisições estarem sendo feitas em tempo mais do que suficiente para tal.

A má-vontade política e a insensibilidade social são, sem dúvida, a motriz dessa postergação que aflige a cada dia os moradores das regiões afetadas, incertos dos seus futuros e cientes de que suas dignidades nada valem frente ao implacável rolo compressor da FIFA, para quem a soberania nacional pode ser suspensa com um reles decreto em favor de interesses privados capitaneados por escroques como Josef Blatter e Ricardo Teixeira. Não restam dúvidas que, para a desvairada lógica da FIFA e dos seus títeres – muitos deles ilustres, escolhidos a dedo para angariar a simpatia popular, a exemplo de Ronaldo e Pelé -, as comunidades atingidas pelas desapropriações se resumem a indesejáveis aglomerações humanas que, atrevidamente, insistem na audácia de se manter no dadivoso caminho do desenvolvimento que será trazido pela copa.

Conforme já afirmado, essa infindável gama de variáveis sócio-ambientais, uma vez objeto de estudos e discussões prévias, certamente diminuiriam não apenas o valor inicial das obras, mas também viabilizaram alternativas menos danosas às populações locais, deixando claro que a objeção que existe não é contra o acontecimento da Copa em si – artifício retórico vagabundo comumente utilizado para “refutar” críticas como as deste artigo -, mas sim contra a forma com a qual ela será promovida pelos entes públicos e privados responsáveis, ao arrepio de inúmeros dispositivos legais e constitucionais e da própria soberania popular.

Essa é a Copa que queremos, com respeito aos direitos humanos e à autodeterminação nacional, não com o alijamento completo da democracia em prol de interesses puramente políticos, privados e particularmente econômicos, conforme vem acontecendo.