Por Paulo Linhares, Professor da UERN
Em recente artigo focalizei a momentosa questão, ainda pouco visitada, da crescente precarização do direito, após uma era de grande florescimento da várias gerações de direitos humanos fundamentais conhecidos, abrangendo desde aqueles de cunho individual e referidos às liberdades civis, até aqueles de caráter supraindividual que versam sobre interesses de indivíduos indeterminados e indetermináveis – os interesses difusos – e referidos à atualíssima demanda social pela qualidade de vida que se desdobra em direitos fundamentais ao desenvolvimento, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à comunicação e informação, à paz e segurança, ao patrimônio comum da humanidade, para citar as gerações de direitos fundamentais imaginadas pelo jurista tcheco-francês Karel Vasak.
Após mencionar que a história dos direito humanos tem como marca mais visível a noção de exclusividade, de modo que tais direitos são um apanágio dos socialmente privilegiados, o jurista Etienne-Richard Mbaya pondera que “[…]Com a criação das Nações Unidas e a adoção dos princípios da Carta da ONU, além da Declaração Universal dos Direitos do Homem, entre outros instrumentos internacionais, finalmente foi abandonada, ao menos teoricamente, a ideia da exclusividade dos direitos humanos.” E que “[…] Vivemos, desde 1945, um período de reconhecimento da sua universalidade e inclusividade, sendo, também, um período de reivindicações dos povos no sentido de exercerem o direito à autodeterminação como um direito dos povos e do homem”, para concluir que “[…] O direito à existência, à vida, à integridade física e moral da pessoa e à não-discriminação, em particular a racial, são normas imperativas da comunidade internacional ou da natureza do ius cogens”.
Entretanto, é fato que, depois de um longo período de expansão (que vai do século XXVIII ao século XX), experimentam atônitos um período de regressão, de franco encolhimento de um conjunto de direitos e garantias, em todos os ramos do direito. O mais grave é que a maioria das ações precarizantes dos direitos se revestem excelentes propósito, como é o caso da polêmica Lei da Ficha Limpa. Ora, a corrupção, no Brasil, atingiu patamares alarmantes e se tornou urgente uma resposta da sociedade a esse fato. Claro, a resposta haveria de ser mais política do que jurídica, mas, a reação mais visível foi a ideia de se fazer uma lei que impediria os velhos corruptos de sempre ingressar nos cargos eletivos sob as bênçãos do cidadão-eleitor. Como? Passando por cima do vetusto princípio da presunção de inocência, de cariz iluminista e enunciado pela primeira vez pelo Marquês de Beccaria. Na prática, de que modo? Permitindo que alguém condenado por um juízo colegiado, mesmo sem trânsito em julgado, seja reputado como inelegível. Na velha Lei Complementar exigia-se que a sentença condenatória transitasse em julgado para gerar a inelegibilidade. Enfim, apesar dos bons propósitos, a Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010 (Lei da Ficha Limpa) pisoteia e restringe alguns direitos fundamentais.
Ocorre que há quase dois anos a Lei da Ficha Limpa esperava por um pronunciamento definitivo do Supremo Tribunal Federal sobre sua constitucionalidade, para ter aplicação. O STF estava dividido diante de dois princípios constitucionais de igual valor: de um lado a questão de moralidade de vida pública e, do outro, a garantia constitucional da presunção de inocência, pela qual o cidadão é considerado como inocente até decisão em contrário da Justiça. A probidade administrativa e pela moralidade para exercício de mandato, embora menores do que o princípio da presunção da inocência, findaram por prevalecer sobre este. Finalmente, no último dia 16 de fevereiro de 2012, o STF concluiu o julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade e de uma ação declaratória de constitucionalidade. Pelo placar de 7 votos a favor e 4 contra, a Lei Complementar nº 135/2010 vai ser aplicada em toda sua extensão aos crimes dolosos com penas acima de dois anos, improbidade administrativa, crimes eleitorais que resultem em prisão, entre outros. Isto resultará na inelegibilidade, por oito anos, das pessoas condenadas criminalmente por órgão colegiado (os tribunais). Os dois maiores juristas da Corte, Gilmar Mendes e Celso de Mello, seguidos por Cezar Peluso e Dias Toffoli, se posicionaram contra a lei. A favor, votaram os ministros Ricardo Lewandowski, Carlos Ayres Britto, Marco Aurélio Mello, Joaquim Barbosa, Luiz Fux, além de Carmem Lúcia e Rosa Weber.
Todavia, a questão não deve estar encerrada, pois envolve questões constitucionais muito sensíveis, assim bem caracterizadas no voto do presidente do STF, ministro Cezar Peluso, quando afirmou que a Lei da Ficha Limpa é “um confisco de cidadania”. E arremata: “A lei foi feita para reger comportamento futuros então deixa de ser lei e, a meu ver, passa a ser um confisco de cidadania. O Estado retira do cidadão uma parte da sua esfera jurídica de cidadania abstraindo a sua vontade“. Merecem uma boa reflexão estas palavras do ministro Cezar Peluso. E copiosos aplausos..