Dentre os atos banais da vida cotidiana, ir ao banheiro é, aparentemente, o mais natural deles. Em geral, não exige reflexão alguma. É uma decisão automática. Sua banalidade e privacidade o delimitam como uma questão que interessa apenas ao indivíduo. Ora, quando informamos ou somos informados com um “vou ao banheiro” não se espera maiores perguntas ou especificações. A resposta, na maior parte das vezes, não passará de um aceno positivo com a cabeça, afinal o banheiro é o lugar por excelência do contato íntimo com o próprio corpo. O que iremos lá fazer ou em qual banheiro ir, se feminino ou masculino, simplesmente não interessa, pois é uma pauta fora de discussão, ponto em comum, não há possibilidades a se discutir.
Pois bem, essa aparente naturalidade não é tão natural quanto se imagina. Ela é “natural” ou se executa com naturalidade quando as expectativas culturais que presidem nossa percepção sobre o gênero estão em perfeita sintonia com que entendemos ser o seu lugar de inscrição adequado. O “ir ao banheiro” não implica maiores perguntas porque o corpo comunicaria claramente o gênero numa continuidade lógica e natural; o corpo de um homem seria o corpo de um homem, mais ou menos masculino e com um pênis, e o corpo de uma mulher seria o corpo de uma mulher, mais ou menos feminino e com uma vagina. Ambos conteriam, explícita e implicitamente, os sinais culturais e anatômicos que os fariam dos tipos de corpos e gêneros diferentes entre si.
Mas quando essas expectativas de gênero não coincidem com o tipo de corpo julgado adequado no qual elas teriam necessária e naturalmente lugar e relação direta? Tal é o caso das travestis, drags, transexuais e afins. Em nossa sociedade, a diferença desses corpos continua não sendo bem acolhida. Seus direitos e cidadania são violados e limitados, inclusive naquilo que seria o ato mais banal, automático e privado do cotidiano, ir ao banheiro. Na vida de travestis, drags e trans, ou mesmo dos homossexuais que não se travestem, o que seria banal se torna preocupante, o automático se converte em ponderação cuidadosa e o que seria privado se torna uma decisão de caráter e preocupação públicas, de interesse de várias pessoas. É difícil entender qual é o problema ou trauma que a simples visão de um travesti num banheiro pode causar, seja homens, mulheres ou crianças para que sua presença seja assim tão desconfortável e abjeta. São pessoas, nem mais nem menos do que isso.
Essa inversão e escândalo podem ser percebidos na precipitação com a qual o vereador Carlos Apolinário (DEM) tentou resolver a questão, que, aliás, em nada ajuda no convívio com a diversidade. Dessa vez, o vereador de SP, autor da iniciativa do tal Dia do Orgulho Hétero, propôs um projeto de lei com o objetivo de criar um banheiro unissex em escolas e estabelecimentos comerciais voltado ao uso de travestis, gays, lésbicas, bissexuais, drags e, se assim o desejarem, para héteros também. Não à toa, dito projeto nasceu após a proibição do cartunista e travesti Laerte Coutinho de utilizar o banheiro feminino numa padaria em São Paulo.
Quais as razões que movem essas reações tão preocupadas e incomodadas com um ato tão corriqueiro da vida e inescapável a todos os mortais, ao ponto, inclusive, de se aventar a criação de um terceiro banheiro, aumentando, desnecessariamente, gastos com algo aparentemente tão trivial como ir ao banheiro?
Poder-se-ia se argumentar em vários sentidos. Há quem afirme que tal iniciativa seria uma maneira de preservar os homossexuais e travestis das reações de intolerância dos héteros, tanto por parte de homens e mulheres, proporcionando-lhes um lugar mais seguro e à vontade. Na mesma linha, com um tom mais segregacionista, fala-se do sentimento de constrangimento e, mesmo, de medo que, no banheiro, a presença de travestis e homossexuais inspirariam nas pessoas respeitáveis, que, no entanto, não sabem respeitar.
Porém, nenhumas dessas respostas tocam a raiz da questão: por que incomoda tanto, preocupa, constrange ou sente-se medo e receio? O que está na raiz de toda essa preocupação social e intolerância diante dos corpos-travestis no banheiro?
A razão dessa preocupação social não é tanto a intolerância com sua presença, mas naquilo em que tais corpos causam. Eles embaralham os sinais da suposta continuidade entre corpo e gênero, entre sexo e expectativa de gênero que julgávamos constituir, naturalmente, as possibilidades de ser homem e mulher, como sendo, apenas, limitada e relacionada a dois tipos de corpos e a um só tipo de desejo – hétero. A complementaridade e correspondência entre sexo, gênero e sexualidade, isto é, a ideia linear segunda a qual se ter um pênis implica ser homem e hétero, gostar do sexo oposto, é, por esses corpos ambíguos, fronteriços e móveis, quebrada em sua sequência e continuidade. Eles lançam diante dos nossos olhos o quão precário e incerto são nossas pressuposições. Retiram o chão em que repousavam nossos julgamentos sobre o que deveria ser adequado enquanto lugares próprios de um homem ou mulher.
Esses lugares próprios do gênero não se limitam ao corpo, aos genitais. Como estes ou nosso nome no RG, também o banheiro é um lugar que encerra e controla a coerência das identidades de gênero. Os banheiros são mais do que ambientes erguidos e fechados construídos unicamente com a finalidade da higiene e de dar um destino as nossas funções de secreção e excreção. Eles são também espaços de regulação dos gêneros, tecnologias arquitetônicas e sociais destinadas a assegurar a adequação entre os corpos e os códigos culturais que organizam nossas expectativas de gênero; do que entendemos e definimos ser um homem e ser uma mulher. Estampado nas portas, os signos “masculino ou feminino”, “cavaleiros ou damas”, “homens ou mulheres”, “elas ou eles”, são interpelações de gênero. Signos, que ao indagarem sobre o que somos, marcam as diferenças entre as identidades e os tipos de corpos.
Se, por um lado, é verdade que em quase todos os lugares somos todos interpelados e enquadrados acerca do que somos, sobre qual o nosso gênero, por outro, esse questionamento somente assume um sentido de cobrança explícita, de coação moral – e mesmo física – acerca da identidade sexual e de gênero sobre uma parcela particular de corpos e pessoas – travestis, transexuais, transgêneros. Justamente aqueles tipos de corpos que evidenciam as fissuras e os pontos cegos das categorias binárias inventadas para dar conta da classificação dos gêneros.
A proposta de um “terceiro banheiro” é uma tentativa de enquadrar e conferir um lugar de inteligibilidade e legitimidade para os corpos-travestis. Porém como inclusão estigmatizada segundo a matriz do binarismo de gênero: incluídos como anormais e antinaturais, alijados do “convívio normal”. A anormalidade também precisa de um lugar próprio, separado da normalidade. Assim, com um terceiro banheiro, evita-se que a diferença seja lançada no seio da normalidade, desestabilizando-a porque ela própria se veria como precária, como resultado daquilo que ela excluí.
Portanto, a raiz de toda essa preocupação social e desconforto não é tanto o “constrangimento” gerado, o preconceito, o receio, quanto é a dúvida e a incerteza instalada em nós mesmos, “os normais”, que os corpos-travestis instilam. Quando entram em cena corpos de “outro tipo”, mulheres e homens que jogam num jogo de luz e sombra com os referentes e sinais de gêneros, o alvo da interpelação de gênero se inverte voltando-se agora contra nós mesmos, “os ditos normais e genuínos”. Afinal, as possibilidades que aqueles corpos incorporam de poderem transformar-se de homens em mulheres e vice-e-versa, isto é, de viver a experiência do gênero e da sexualidade de outra maneira, também elas não se abrem para todos os demais?.