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Paredões, pobreza cultural e a derrota da cidadania

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Comentário publicado no post “casa de show desafia lei do silêncio em Natal”

 

Por Roberto Grossi,

 

Dante vem aí.

Triste ler o post “Casa de show desafia a lei do silêncio em Natal” em pleno sábado e constatar quantas agressões vivenciamos diariamente, quantas atitudes incompatíveis com a nossa pretensa humanidade, ocorrem aqui, em nossa cidade.
Só posso ser, distinguir-me, na medida em que reconheço o outro.
O que vai na contra-mão do “Tô nem aí”.
Agora mesmo, enquanto escrevo, ocorre um culto de louvor em uma praça pública aqui próxima. O mesmo espaço no qual eu despenderia entre dez a quinze minutos caminhando até lá é vencido em segundos pelo incomodo som desmedido. Se realiza no mesmo espaço público que deveria servir como “Área de Lazer” e que é cedido pela nossa prefeitura para realização de shows que vão até o raiar do dia. O mais terrível destes episódios, e que privei-me de acompanhar compulsoriamente pois estava viajando, foi a gravação de um DVD grafiteiro. Pelos relatos não economizaram nos equipamentos sonoros nem nos decibéis. Ou seja, com aval do poder público, com segurança feita pelo poder público, a mesma segurança sempre tão escassa nas periferias e que hoje falta em toda cidade. O mesmo poder público que deveria ordenar uma vida tranquila aos seus cidadãos. Durma-se com um barulho desses.
Depois desses “Shows” sobra a terra arrasada, lixo e fedentina. Adeus gramados, não se pode correr pela pista de treinamentos, ao menos não respirando. Os valentes garis vão tentando fazer o seu trabalho mas, qual o problema da sujeira ali, se toda Natal não está muito diferente?
Fico triste porque é patente o descaso com a cidade, ao menos os canteiros, as praças, as ruas já foram mais cuidadas, o que temos hoje: buracos, lixo, entulho e muito barulho, uma verdadeira agressão à cidade que escolhi para viver.
E o barulho agride, é capaz de enlouquecer o mais são.
O orador lá na praça, agora, pede aos natalenses que tirem o pé do chão. Canta, canta, e procura uma irresponsável mãe anunciando seu rebento perdido. Glória e oração. Aleluia.
Não é privilégio dos vizinhos de bar, ou de áreas de lazer como essa, seria perfeitamente compreensível você surtar ao ser importunado por um ou mais sem noção e sem fone de ouvido mas com celular em um transporte coletivo. Não preciso retomar a discussão sobre os coletivos agora, seria agressivo demais.
Antes do advento do celular com mp3, o programa do Mução (escroque num programa de pegadinhas) era confusão certa nos ônibus equipados com rádio e que teimavam em sintonizá-lo. Alguém que já havia ingerido algumas para suportar o retorno para casa depois da labuta, não se continha e inadvertidamente repetia os impropérios do locutor, um marido ofendido devido a presença da sua companheira, a escutar os repetidos impróprios às senhoras castas, sempre colocava o pobre incauto para fora do veículo, depois de uma boa confusão e às ameaças do motorista de terminar a viagem em uma delegacia.
Há horas que tal qual o personagem de Machado de Assis dá vontade de colocar todos no manicômio, ou, depois como no conto, se trancar lá sozinho por descobrir-se o divergente de todos.
Mas hoje não temos manicômios. Pelo menos não como um lugar delimitado.
Há um componente que permeia essa situação e que, acredito, tenha sua motivação naquele movimento da véspera do primeiro de abril de 1964.
Foi a partir do golpe, com a ditadura que instaurou-se um pensamento único, a censura com perseguição aos que simplesmente poderiam pensar diferente, baniu-se dos currículos escolares a Filosofia, a Sociologia, a Música. A educação, a reflexão e a crítica são sempre prejudiciais à ordem imposta pelo poder da força. De uma hora para outra fomos apartados da política, do espaço público. Proibidos de nos cuidarmos uns dos outros, cada um por si e o general por todos. Brasil do ame-o ou deixe-o. O País que vai pra frente. E foi.
A música popular brasileira era festejada e combativa demais na ditadura militar.
A nossa cultura luta até hoje contra a ditadura, da mídia, do mercado, dos orçamentos.
A arte não passa na TV, no rádio ou nos poucos cinemas, com raríssimas e honrosas exceções.
Está vivíssima nos rincões, sertões, nas cidades e capitais do País, mas a arte brasileira não desfila pela mídia.
O que sobra? – Forró de plástico, sertanojo e suingueiras. Esta última, ouvi rumores, já chegou ao Setor II da Universidade, num réquiem lamentável para um enterro de semestre. Um colega, analítico, confidenciou ter exibido seus passos nesta incrível noite. Soube também que em concorrido baile de formatura, de uma turma de direito, os doutos bacharéis e seus convidados requebraram, até a exaustão, embalados pelo “Enfinca”, cantado por ninguém menos que a própria banda autora do “hit”. A glória!
Escrevo, escrevo e o culto também não termina, deve fazer parte do Bota fé Natal (ouvi menções à Tv Canção Nova), que fechou pistas da Ponte Newton Navarro.  Ah! nosso espaço público, geográfico e eletromagnético, Estado laico…

Mas por que a discussão sobre o alto nível sonoro desembocou na pobreza cultural da mídia?

Porque na minha opinião andam juntos.
Descendentes siameses dos mesmos pais.
Porque são cabeças ocas escutando músicas vazias.
Sem se incomodarem com mais nada.

Da falta de olhar para o outro como um igual.
Que merece, no mínimo, consideração em não ser importunado.

E do descaminho que Natal se encontra.
Justamente pela falta de cuidado do espaço público, por não cuidarmos uns dos outros.
Educação, saúde, segurança, mobilidade, moradia…

Não há providências nem há justiça: O Inferno de Dante se aproxima.
Mas muita gente não está nem aí…

Terminou o culto!