Por Tadeu de Oliveira
(Estudande de Jornalismo da UNP)
Lançado em setembro de 2010, o livro “Em alguma parte alguma” do poeta Ferreira Gullar, pseudônimo do maranhense José Ribamar Ferreira,revela o autor com a percepção aguçada, observando e refletindo sobre o universo que o cerca com a lucidez e a intensidade características de seu discurso.
Após onze anos da publicação de seu último livro de poemas, “Muitas vozes” em 1999, as 144 páginas da obra lançada pela editora José Olympio guardam o resultado dos “espantos” que Gullar teve nesse período sem novas publicações no gênero.
Vencedor do Prêmio Jabuti 2011 na categoria ficção, o livro é a décima sexta obra poética do autor que, desde a publicação de seu primeiro livro, “Um pouco acima do chão” em 1949, passeia por diversas linguagens na arte de fazer poesia, pautado pelo estudo e movido pelo “espanto”, termo que o poeta usa para definir o momento que o poema surge.
No primeiro livro (considerado ingênuo pelo próprio Gullar), versos formais com forte influência dos poemas clássicos. As primeiras experiências com a linguagem aparecem na segunda obra, “A luta corporal” em1954, marco do movimento concretista. O rompimento com o movimento em 1959 demonstra um Gullar lúcido o suficiente para ser radical quando necessário.
Radicalismo que o fez organizar e liderar o grupo neoconcretista, onde realizou experimentos como o “Poema-objeto” e o “Poema enterrado”, além do ensaio “Teoria do não-objeto” onde expressou os pontos fundamentais do movimento.
Em três anos, o salto mortal na beira do abismo. Do experimentalismo da poesia concreta e neoconcreta à poesia de engajamento social dos versos que ganhariam corpo nas páginas de “Dentro da noite veloz”, obra editada em 1975, Gullar passou pela literatura de cordel e por movimentos de cultura popular como o Centro Popular de Cultura da UNE, onde foi presidente no período do golpe militar de 1964, até atingir a complexidade dos poemas do livro que marca a poesia como instrumento de reflexão sobre a necessidade de lutar contra as injustiças no país.
Neste período, ensaios como “Vanguarda e subdesenvolvimento” em 1969 (onde busca aliar conceitos da vanguarda estética da arte europeia a realidade dos países subdesenvolvidos) e peças de teatro como “Se correr o bicho pega se ficar o bicho come” em 1966, feita em parceria com Oduvaldo Vianna Filho, revelam Ferreira Gullar cada vez mais sensível à problemática do homem e a complexidade da existência.
Entre filosofias, políticas e lutas, o ápice do processo de produção poética ainda estava por vir. Em 1971, forçado a sair do Brasil, já no exílio em Buenos Aires, o poeta produz em 1976 “Poema Sujo”, considerado por Vinícius de Moraes “o mais importante poema escrito em qualquer língua nas últimas décadas”. Os elogios de Vinícius à Gullar não pararam por aí. Segundo ele “Gullar é o último grande poeta brasileiro”.
De volta ao Brasil, o poeta continua com novos “espantos” como os dos livros “Na vertigem do dia”, em 1980 e “Barulhos”, em 1987, ensaios como “Argumentação contra a morte da arte”, em 1993 e o livro de crônicas “Resmungos”, em 2005, entre outras obras que alçaram Gullar a condição de um dos grandes escritores da língua portuguesa, merecedor dos prêmios Machado de Assis em 2005 e Camões em 2010, além das indicações ao Prêmio Nobel de Literatura em 2002 e 2004.
Esta trajetória diversificada e intensa da produção artística de Gullar surge no novo livro. “Em alguma parte alguma” demonstra mais uma vez a busca do poeta por uma nova linguagem. Em entrevista à Folha de São Paulo em junho de 2010, o poeta falou sobre a relação entre ordem e desordem que segundo ele nortearam a produção da obra: “Eu escrevi no limite da ordem, ou seja, no limite da desordem”, disse o poeta.
O livro aborda temáticas diversificadas sempre revelando reflexões sobre o tempo e o espaço, o que fica evidente nos versos de “O universo”, “Galáxia”, “A estrela” e “A relativa eternidade” onde o poeta afirma: “se o mundo dura tanto e eu tão pouco importa pouco se ele não for eterno”.
Dentro desta perspectiva, ele observa e reflete sobre o universo a seu redor e sobre si mesmo, desde a complexidade que compõe a existência de um inseto à descoberta de um novo Gullar que surge ao lado do poeta como está registrado nos versos: “Foi-se formando ao meu lado um outro que é mais Gullar do que eu que se apossou do que vi do que fiz do que era meu”.
A obra também explora temáticas como a materialidade do indivíduo e a consciência da existência que um dia terá seu fim presente nos poemas “Ossos”, “Acidente na sala”, além da condição de outros seres vivos captados pelo poeta e registrados na obra como “A planta”, “O louva-deus” e “Uma corola”, poema que traz os versos que batizam o livro.
A arte também faz parte da obra nos versos de “Figura-fundo”, “ Mínimo voo” e “Quadro-Corpo”, estes dois últimos dedicados aos amigos Amílcar de Castro e Iberê Camargo respectivamente. Em “Os fios de Weissman”, as experiências neoconcretistas são exploradas. A morte também é um tema presente. Em “A morte” Gullar diz que “a morte não tem falta de nada não tem nada é nada a paz do nada” e em “Reencontro” Gullar afirma: “estou rodeado de mortes defuntos caminham comigo na saída do cinema São muitos…”
Apesar de registrar sua presença, a morte parece distante do poeta de 81 anos. “Em alguma parte alguma”, revela um indivíduo ativo, atento ao universo que o cerca, refletindo sobre os vários detalhes que compõem a existência. Gullar continua fazendo poesia em estado puro. Versos simples e objetivos ao alcance de todos.
Multifacetado, o livro revela a maturidade da produção artística de Ferreira Gullar, poeta que entrou e saiu de todas as estruturas sem perder a lucidez e a intensidade. Semelhante a sua trajetória, deixa a impressão de que Gullar está aqui, ali e em todas as partes.
Fotos: Banco de imagens Google.