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Liberdade e livre-arbítrio – parte 1

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Liberdade e livre-arbítrio
O Terapeuta
"O Terapeuta", de René Magritte (1937)

Da Teia Neuronial – É por parte de cristãos de diversas denominações que mais se ouvem queixas reacionárias perante críticas dirigidas ao Cristianismo, manifestações pelos direitos dos LGBTs e reivindicações pela efetiva laicidade do Estado. Quando uma boa quantidade de pessoas critica o comportamento de evangélicos que transformam uma cabine do metrô numa barulhenta sessão de pregação, com direito a possessões divinas e diabólicas, alguns evangélicos sentem que se trata de uma repressão a sua crença. É difícil que algo assim não provoque calorosas discussões na internet.

Recentemente a direção do Hospital Regional do Agreste, em Caruaru, Pernambuco, proibiu as práticas de pregação e oração por parte de visitantes nas enfermarias. Nada mais é do que um ato de bom senso e compreensão da necessidade de os vários pacientes repousarem e se recuperarem de procedimentos médico-cirúrgicos. Pastores se sentiram oprimidos em sua liberdade de culto, como se a pregação fosse mais importante do que a liberdade e a saúde de outras.

Eu que já fui paciente de enfermaria e UTI sei muito bem qual é essa necessidade de um ambiente tranquilo, sem o qual o corpo não relaxa e não pode se recuperar. Fazer oração em grupo e/ou em voz alta numa enfermaria pode fazer mal aos pacientes, mesmo aos que são cristãos.

O movimento pela transformação do Estado brasileiro numa instituição verdadeiramente laica e democrática tem provocado indignação por parte dos setores mais conservadores, e entre estes tem destaque a bancada evangélica do país. Propostas como o PL 122 (“Lei anti-homofobia”) fazem com que muitos pastores se sintam tolhidos em seu direito de dizer o que pensam sobre a homossexualidade. O fato é que esse projeto de lei não chega a tanto, apenas prevê punição por atos de preconceito, discriminação e violência por motivação homofóbica. O pastor pode dizer o que quiser sobre o suposto caráter demoníaco da homossexualidade, desde que não incite a violência contra os homossexuais nem trate desigualmente as outras pessoas por causa de sua orientação sexual, a não ser que queira ser punido.

Isso significa que uma mãe ou um pai evangélicos estão sujeitos às penas da lei se demitirem uma babá lésbica pelo fato de ela ser lésbica? Com certeza. Isso é tolher a liberdade dos evangélicos? Não, isso é uma medida para desencorajar o preconceito, pois nenhum argumento pode negar o fato de que achar que a presença de uma lésbica ou de um gay poderia ser prejudicial para uma criança é um ato de puro preconceito.

Dissertar sobre os limites da liberdade é difícil e mexe com muitos de nossos preconceitos e valores. A importância da liberdade foi tão cultivada na cultura ocidental que ela é sempre supervalorizada em qualquer discurso, mesmo que não haja unanimidade sobre o que ela significa. Muitos cristãos se utilizam do argumento de que a liberdade deve ser preservada em detrimento da repressão, o que implica que qualquer crítica a qualquer coisa relacionada a sua religião é um erro e um absurdo atentado a seu direito de professar as ideias que tiverem.

A liberdade é um valor muito prezado por mim também. Porém, o perigo da ideia de que deve haver liberdade irrestrita é que ela pode ser usada para justificar atos contrários à liberdade, como: a manutenção da restrição do casamento apenas a casais heterossexuais; a proibição de casais homossexuais adotarem crianças; a institucionalização do ensino religioso nas escolas; atenuantes à punição de atos de discriminação a homossexuais ou a praticantes de religiões afro-brasileiras, entre outros.

Nessa perspectiva, a ideia de liberdade se alia à ideologia da tolerância, do perdão e do livre-arbítrio cristãos. O problema dessa ideologia é que, se tudo deve ser tolerado e perdoado em nome do livre-arbítrio, então não deveríamos nos preocupar com atos de violência de nenhum tipo, pois esses atos são praticados segundo a vontade de pessoas livres. As consequências desses atos, quando atentam contra a liberdade de outras pessoas, nessa perspectiva, deveriam assim ser relevadas, pois quem cuida de tudo é um ser superior e justo. Se um homem comete assassinato, desrespeitando a liberdade da vítima, “Deus saberá o que fazer com ele”; se um político surrupia milhares do dinheiro dos contribuintes, “a justiça de Deus o punirá”; se uma mulher bate em seus filhos e os prende em cárcere privado, “Deus tem um plano para ela”.

Pessoalmente, sou a favor do perdão, da reconciliação entre os indivíduos, do não-cultivo da vingança, da não-manutenção de sentimentos de mágoa. Guardar rancor faz mal para a própria pessoa injuriada. Entretanto, na vida em sociedade, é preciso estabelecer parâmetros e medidas que desencorajem a prática de atos e atitudes que firam a liberdade alheia, e isso pode incluir várias formas de punição, motivadas pela razão e não por emoções ligadas à vingança.

Ao meu ver, a liberdade só se efetua realmente quando as pessoas de uma sociedade conseguem tomar decisões baseadas no bem comum, no princípio cosmoético do “aconteça o melhor para todos”, colocando sua liberdade individual em segundo lugar, sem renunciá-la absolutamente. Principalmente, ser livre é se despojar de vícios e valores preconceituosos. O ethos da liberdade plena é a autolibertação dos próprios cabrestos e dos hábitos que prejudicam os seres ao nosso redor (e, em muitos casos, a nós mesmos).

[Continua na próxima semana.]

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  • O Terapeuta – René Magritte (1937)

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