Por Rafael Menezes/RJ
O azul cálido da parede contrastava com o azul de fora da esquadria, e era aquele azul que eu sempre quis tocar. Eu olhei minha face no espelho… eu, num holograma minucioso com detalhes agudos, eu me enxergava nítida como numa poça de chuva, depois do turbilhão que se passava dentro da minha cabeça. E sim, eu conseguia sorrir mesmo desfigurada.
Eu me vi mulher naturalmente, como se sempre houvesse sido, eu experimentei minhas formas como se apenas tivesse tido a paciência de esperá-las desabrochar, feito uma menina boba que anseia por seios ainda aos 12 anos.
Eu me vi completa e absorvi cada dia como se fosse o último, porque a dádiva de estar viva sendo uma travesti é quase um milagre divino. Nós somos a mutação natural do que a natureza falhou em esculpir.
Eu observei amigas sendo massacradas e homenageadas depois de morta como se o mérito de ter existido bastasse. Não! A vida não se trata somente de existir ou não, é preciso sobressair, edificar, pisar na terra e sentir-se viva mesmo aos prantos, mesmo que a tal terra seja ao lado da cova de uma amiga que morreu por motivo torpe.
Somos travestis, mulheres ceifadas do direito de parir por um erro de DNA, como se já não bastasse isso, somos privadas de termos o nome que bem quisermos, e temos travado na linha fria da vida o direito também de caminhar como qualquer mulher: seja ela feliz ou não.
Não, não são os seios e cabelos compridos que me faz plena, porque o que adquiri com o tempo não me fez travesti, eu sempre fui travesti. Eu turbinei meu corpo, fiz o alinhamento dos quadris, a calibragem do meu eixo, e na busca incessante de felicidade eu talvez tenha me esquecido de trocar as velas do coração, mas aí eu me indago: de que serve o coração em certos momentos, pra uma travesti? A não ser pra acomodar balas ou facas de transfóbicos, ou ainda, o desamor do inaceitável?
Troquemos então, troquemos nossos corações por discos rígidos, onde guardaremos os arquivos, os processos, as lembranças a família que não se vê mais, a agressão de ontem, e num cantinho com poucos bytes, quem sabe, os planos de amanhã? Absolutamente não. Numa era onde transexuais são expostas a 190 milhões de expectadores que decidem se ela é digna ou não para andar de biquíni e ficar rica dentro de um circo de horrores, onde se mostra o que há de pior no ser humano, eu pergunto?
Você se orgulha de que? O que tem valido a pena na tua luta diária, travesti? No que você se apega quando está com medo? Em quem morta você pensa quando comete um erro? De quem morta você se lembra quando quer ser apenas você mesma? Mas o mais importante, em quem viva, e essa pode ser você, você pensa pra seguir adiante?
Somos travestis e transexuais as milhares guardadas dentro de containers lacrados, soltos a deriva esperando uma liberação federal para que possamos ser distribuídas nas prateleiras da vida. Somos as tais bonecas de mau gosto que as mães não comprariam, que os pais esconderiam, e que os filhos teriam curiosidade, mas pasmariam em descobrir que além de falar também somos dotadas do poder insano de amar.
Sim minhas caras e meus caros, somos as humanas pré históricas, objetos de pesquisas e estudos científicos para que não se descubra nada além de incompreensão. Bicho mulher com extinto maternal, que abraça a criança desesperada que a família expulsou de casa, mais uma cria da vida exposta ao genocídio constante de almas. Somos nossas próprias mães, pais, aconchego e policia, somos das ruas, das casas, dos hospitais, das delegacias… somos fruto da falta de entendimento entre o civil e o parlamentar talvez; mas creio eu que somos totais vitima da falta de educação de um país onde não se respeita o que vai além do seu entendimento, e é assim com tudo desde a religião ao próprio amor.
TRAVESTI, TRAVESTI, TRAVESTI… TRAVES EM TI O TEU PRECONCEITO: PORQUE A VIDA JÁ É DIFICIL DEMAIS PARA TODAS NÓS.