Por Rafael Lucas, Filósofo
Até o senso comum já sabe que aquilo que convencionou-se chamar de “aquecimento global” está causando inúmeros problemas ao redor do mundo – verões mais quentes que a média em alguns lugares, com ondas de calor que ceifam muitas vidas; invernos mais rigorosos em outros, ocasionando a quebra da cotidianidade maquinal que impera no mundo capitalista, tal como vimos, no ano passado, com o fechamento de vários aeroportos na Europa; chuvas mais intensas que o normal em muitos lugares, entre outras mazelas. Nesta terra onde cantam os sabiás não poderia ser diferente. Aliás, como somos um “país tropical”, o fato é que não somos tão “abençoados por Deus” a ponto de estarmos imunes aos efeitos desse aquecimento. Pesquisas científicas apontam que é precisamente entre os trópicos que os efeitos nefastos desse aquecimento serão (estão sendo) sentidos com mais intensidade.
Como se isso não fosse suficiente, os governantes de algumas das cidades brasileiras mais atingidas pelas chuvas do começo do ano passado – tais como as da região serrana do Rio de Janeiro, onde houve mais de novecentas mortes –, embora tenham tido quase um ano para aplicar as verbas destinadas à recuperação dos estragos e para construir novas moradias para os que habitam em áreas de risco, não só não se esforçaram para solucionar, na medida do possível, esses problemas, como ainda desviaram essas verbas, o que ocasionou, no caso do estado supracitado, investigação por parte do tribunal de contas estadual. Parece que o mesmo filme está para ser reprisado: chuvas, deslizamentos de terra, mortes, tragédias, corrupção.
Esse quadro, com efeito, me conduz a várias indagações: seria necessário haver calamidades como essas, ou mesmo como as que ocorrem neste momento em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, para que o poder público pudesse se mobilizar para tentar solucionar problemas cujas resoluções constituem deveres morais e constitucionais de todo e qualquer governante? Não seria obrigação de qualquer governo, com excessão dos tirânicos, proporcionar o bem estar daqueles para os quais ele existe? O Estado não existe para o povo e em virtude do poder que cada um dos indivíduos, individualmente, concede aos governantes?
O dever dos governantes é zelar pelo bem estar dos cidadãos, o que inclui, dentre outras coisas, a construção de moradias em áreas seguras para habitação, bem como o engendramento de toda a infraestrutura necessária para uma existência digna de um ser humano. Ao passo que os governantes se isolam do povo em suas mansões suburbiais e por detrás dos vidros blindados de seus carros importados, aproximando-se do mesmo apenas de quatro em quatro anos a fim de assegurar seu espaço para mamar nas tetas públicas, o povo sobe os morros em busca de algum lugar para construir seus casebres, à procura de algum pedaço de terra onde possam tentar fazer por si mesmos aquilo que os governantes deveriam fazer, mas não fazem. Assim, diante de tais fenômenos naturais, mas que são, em grande medida, devidos à nossa atividade doentia sobre a natureza, parece-me que, no Brasil, vale a máxima às avessas – é melhor remediar do que prevenir. É melhor retirar corpos de entulhos e da lama do que cuidar das pessoas, proporcionando-lhes uma vida decente; é melhor pagar mal aos professores e não investir em educação do que assegurar ao povo a instrução necessária para que ele se liberte das amarras da alienação, dando um pontapé no traseiro daqueles que só o oprimem; é melhor, ou melhor, é necessário fazer investimentos monumentais em virtude de um evento esportivo que recheará as contas de alguns poucos indivíduos do que fazê-los em razão das reais necessidades dos cidadãos.
Embora nós, comedores de camarão, ainda não tenhamos problemas climáticos tão graves quanto os que ameaçam outros lugares deste país e do mundo, inúmeros problemas, de diversas ordens (tais como o sucateamento das escolas públicas, a corrupção quase generalizada dos políticos locais, o péssimo e caro sistema de transporte público etc. etc.) são tão reais quanto aqueles e, por isso mesmo, exigem soluções prementes.
Que não nos deixemos ludibriar pelas prestidigitações que colimam desviar nossa atenção dos reais problemas que acometem nossa cidade e nosso país.