Por Raphaela de C. Mello
Vivemos tempos de incertezas e mudanças repentinas. Tudo o que poderia ser duradouro – sejam relacionamentos afetivos, vínculos empregatícios, produtos e até mesmo projetos de vida – parece desmanchar no ar. As sociedades ocidentais aprenderam, com a lógica do consumo, a desenvolver um insaciável apetite por novidades. Assim, consomem e descartam objetos e pessoas como nunca antes na história.
Dessas observações nasceu o conceito de “modernidade líquida”, cunhado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman, de 86 anos, para definir a contemporaneidade. Professor emérito das universidades de Varsóvia, na Polônia, e Leeds, na Inglaterra, onde vive, ele é autor de 26 títulos publicados no Brasil, entre eles, Modernidade Líquida, Amor Líquido e A Arte da Vida, todos com selo da editora Zahar.
Em recente entrevista concedida aos organizadores do evento Fronteiras do Pensamento – uma série de palestras ministradas por grandes nomes do pensamento contemporâneo -, ele aparece no vídeo com os inexoráveis sinais da idade. Cabelos brancos, franzino e corcunda, segura seu cachimbo sentado na poltrona de couro do escritório abarrotado de livros. Abatido, talvez, mas de forma nenhuma antiquado. Senso de humor, perspicácia e intimidade com os temas da atualidade não lhe faltam. Crítico afiado, ele opina sobre fenômenos atualíssimos como redes sociais, namoros e amizades virtuais, colapsos econômico e ambiental. Assim, ele nos ajuda a entender, na medida do possível, o presente – veloz, inconstante e repleto de estímulos.
“Bauman transita pelas áreas de sociologia, filosofia, política, economia e literatura no intuito de compreender a existência cotidiana de homens e mulheres comuns, evidenciando a dimensão ética e humanitária que deve norteá-la”, afirma Margarida Limena, professora do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em ciências sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). O que ele enxerga, preocupa. “O intelectual aponta para fenômenos culturais e sociais de crise, desintegração e desamparo que atingem, nos nossos tempos, proporções críticas”, reforça a socióloga Miriam Adelman, da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Entre tantas novidades sobrepostas no decorrer do século passado e início deste, uma é, segundo Bauman, dominante e irreversível. “A humanidade multiplicou as conexões, as relações, as interdependências, as comunicações, espalhadas por todo o mundo”, destaca. Só que quantidade não equivale a qualidade. Se intensificamos as ligações entre as pessoas e as nações, isso não significa que essas pontes sejam robustas, muito menos longevas.
Ao denunciar a fragilidade das relações humanas, o sociólogo nos faz pensar sobre a exacerbação do “eu” em detrimento do sentido de coletividade. “As sociedades foram individualizadas. Em vez de se pensar em termos de a qual comunidade se pertence, tendemos a redefinir o propósito de vida para o que está acontecendo com cada pessoa”, ele aponta.
De fato, a busca por uma identidade que se encaixe nos padrões sociais passa a nortear as escolhas e os comportamentos. Por isso, tanta gente vira refém da autoimagem e do consumismo. “Precisamos recriar nossa própria identidade, muitas vezes, partindo do zero. Isso é tarefa para a vida inteira porque as formas atraentes e tentadoras de viver mudam inúmeras vezes”, critica. A incessante reformulação do nosso “cartão de visita” faz com que “ser”, mais associado a nossa essência, seja menos valorizado do que a ânsia de se manter em constante adaptação às demandas que vêm de fora. Com isso, alerta o intelectual, milhares de indivíduos se sentem incompletos nos dias de hoje. Carregam um vazio que nada é capaz de preencher.
CONEXÕES RAREFEITAS
A sensação de que tudo é cada vez mais passageiro se deve, em boa medida, à expansão acelerada do mundo virtual. Na internet, o verbo conectar-se solapou o comprometer-se. E isso mudou as regras dos relacionamentos. “Um viciado em Facebook gabou-se de que havia feito 500 amigos em um só dia. Minha resposta foi que eu tenho 86 anos, mas não tenho 500 amigos. Então, provavelmente, quando ele diz amigo e eu digo amigo não queremos dizer a mesma coisa”, conta Bauman.
Na juventude, ele conheceu o sentido das palavras “laço” e “comunidade”. Por isso, olha com desconfiança para as redes sociais como Orkut e Facebook. “A atratividade do tipo de amizade do Facebook está na facilidade de se conectar. Mas o maior atrativo mesmo é a facilidade para se desconectar. Você só pressiona excluir, e pronto! Ao passo que romper relações reais, olho no olho, é sempre um evento traumático”, compara o intelectual. Essa nova dinâmica, ele afirma, “mina os laços humanos”. Em contrapartida, tal cenário virou terreno fértil para a proliferação de relações superficiais e efêmeras. “Os laços só precisam ser frouxamente atados, para que possam ser outra vez desfeitos, sem grandes delongas, quando os cenários mudarem – o que, na modernidade líquida, decerto ocorrerá repetidas vezes”, ele escreve na obra Amor Líquido.
A moda pegou. Muitos foram seduzidos pela frouxidão dos elos interpessoais, passando a temer vínculos mais profundos. Ora, se o “peso” inerente a qualquer compromisso é uma certa restrição da liberdade, uma vez que ele limita as oportunidades de um indivíduo se relacionar com outras pessoas, cresce o interesse por encontros fortuitos, mais leves. Melhor deixar todas as portas abertas do que se trancar num único cômodo. Assim pensam os adeptos das conexões rarefeitas.
Não é sem motivo que os consultórios de psicologia estão cheios de gente frustrada ante a dificuldade de selar pactos consistentes. A solidão oprime, apesar da aparente euforia vivenciada no universo virtual. “Estamos todos mergulhados numa solidão e numa multidão ao mesmo tempo”, ele observa.
POTE DE OURO
Bauman também critica a produção em massa de receitas para a felicidade. “Desconfie de qualquer especialista ou livro que ofereça fórmulas prontas”, ele recomenda. Na obra A Arte da Vida, o polonês compara a busca pela realização a uma maratona sem linha de chegada. “Numa sociedade de compradores e numa vida de compras, estamos felizes enquanto não perdermos a esperança de sermos felizes”, ele escreve. A ânsia por novas oportunidades e recomeços é o que move, alguns metros à frente, o troféu da suposta plenitude. Assim, nunca paramos de correr atrás dele.
Acontece que, na visão do estudioso, a felicidade é um estado, por natureza, ambivalente. Não comporta simplificações. “Segurança e liberdade são dois valores absolutamente indispensáveis para uma vida satisfatória e relativamente feliz. Segurança sem liberdade é escravidão, liberdade sem segurança, um completo caos”, ele ressalta, e acrescenta: “O problema é que ainda ninguém encontrou a fórmula de ouro: a mistura perfeita de segurança e liberdade”. Aproximar-se de um lado pressupõe afastar-se do outro, ou seja, ganhar e perder ao mesmo tempo. No entanto, ele acredita, o ser humano “nunca vai parar de procurar essa mina de ouro”.
Para Bauman, ser feliz é, sobretudo, uma questão de escolha ante as possibilidades determinadas pelo destino, o imponderável. E o que determina a maneira como manejamos o livre-arbítrio é nosso caráter. Portanto, só nos resta fazer o melhor com aquilo que temos. “Sócrates considerava que o segredo de sua felicidade estava no fato de ele próprio ter criado sua maneira de viver. Logo, aqueles que imitam o modelo de felicidade de outra pessoa traem o exemplo do filósofo grego”, diz. “Para cada ser humano há um mundo perfeito feito especialmente para ele ou para ela”, arremata.
O sociólogo, entretanto, não oferece certezas quanto ao futuro. “Não sei dizer se este é o começo de um novo modo de vida que durará séculos ou se é um período de transição, de um tipo de ordem social para outro”, analisa. Alguns o consideram pessimista. Mas há divergências. “Ainda que reconhecendo as dificuldades em se viver numa sociedade fragmentada, que estimula o individualismo, a insegurança e a fragilidade dos laços humanos, Bauman acredita na possibilidade de mudança. Para isso, é vital o papel das novas e das futuras gerações”, opina a professora Margarida Limena. “Ele propõe a atitude de se cultivar um mundo mais sustentável e justo, que respeite as diferenças e procure a igualdade social”, afirma a socióloga Miriam Adelman. Uma utopia, segundo o sábio polonês, necessária para que possamos seguir lutando por dias melhores.
Publicado no sítio Planeta Sustentável