Por Renato Janine Ribeiro
(Filósofo e prof. Titular da USP)
Estamos completando um ano com uma mulher na Presidência da República, a primeira em nossa história. A data pede reflexão. Três importantes países da América Latina elegeram nos últimos anos mulheres para governá-los: na ordem cronológica, Michelle Bachelet, no Chile, Cristina Kirschner, na Argentina, e Dilma Rousseff. Todas tiveram ótima avaliação. Bachelet, que não fez seu sucessor, saiu do governo altamente popular. Cristina foi reeleita com ampla votação. As pesquisas de opinião são bem favoráveis a Dilma. Mas mal temos mulheres nos demais escalões do poder. São poucas as governadoras, prefeitas, deputadas, senadoras e vereadoras. Sentimos dificuldade até com a palavra para designar quem está na chefia de Estado. Embora Dilma Rousseff se diga “presidenta”, quase toda a imprensa a chama de “presidente”. O dicionário valida ambas as formas, mas já li no Facebook, depois que usei o “presidenta”, que isso provaria meu suposto petismo… Uma dedução, obviamente, mal feita.
Porém, tudo isso é sintoma de uma grande dificuldade, não apenas dos brasileiros mas dos homens em geral – e aqui uso “homem” no sentido de varão e no de membro do gênero humano -, para assimilar a novidade que é ter mulheres no poder. Só no século XX elas adquiriram o direito de voto. No Brasil, votaram pela primeira vez em 1933. Antes disso, algumas mulheres exerceram o poder como rainhas, por direito próprio – isto é, não como meras esposas de homens que fossem reis. Mesmo isso não foi fácil. Ironicamente, a maior estadista inglesa, Elizabeth I, que reinou de 1558 a 1603, só nasceu devido à ansiedade do pai, Henrique VIII, por ter um filho varão. Como o primeiro casamento do rei lhe deu apenas uma filha, ele receava que uma sucessão feminina fosse contestada. Daí, a famosa série de divórcios de Henrique e sua ruptura com a Igreja Católica – para, afinal, ter como definitiva sucessora logo uma mulher… Mas, embora Elizabeth tivesse enorme poder em suas mãos, seus auxiliares a pressionavam para se casar. Ela deveria ceder o poder a um homem. No fim das contas, ela só governou porque decidiu conservar-se solteira. Contudo, a estabilidade de seu longo governo teve um preço: com ela, terminou sua dinastia. O trono inglês passou aos reis da Escócia.
A despeito de tudo, avançamos muito. Lembro que, em 1989, a antropóloga Mariza Corrêa foi a primeira diretora de uma faculdade na Unicamp. Já a USP demorou mais – o que é espantoso, levando-se em conta que tem unidades, como a enfermagem e a educação, predominantemente femininas – mas já teve uma reitora. A primeira senadora do Brasil foi Eunice Michilles, em 1979; ela era, porém, apenas uma suplente, que assumiu o cargo com a morte do titular. Só em 1990 tivemos mulheres eleitas para o Senado. Hoje, isso já não é exceção, mas está longe de ser a regra. Uns anos atrás, ouvi uma vereadora paranaense contar que – toda vez que falava na Câmara – os colegas homens riam dela. Isso tornou sua vida insuportável até que, participando em Curitiba de um encontro de mulheres detentoras de mandatos, percebeu que podia ter o apoio, mesmo a distância, de outras mulheres, e enfrentou a situação.
Ainda é difícil, porém, aceitar uma mulher chefiando o governo. Não falo do mundo islâmico; curiosamente, países muçulmanos – embora não árabes – já tiveram mulheres no poder, como Benazir Bhutto, no Paquistão (mas será que o fato de ser mulher contribuiu para ela ser assassinada?). Penso em nosso próprio país. Porque o preconceito é tenaz. Mesmo quando não é agressivo contra as mulheres, um resíduo importante dele aparece na quase-impossibilidade de conciliar o que se espera da mulher e o que se espera do governante.
De quem governa, esperamos que mande. Da mulher, esperamos que seja doce. É possível mandar docemente? Milhares de anos nos acostumaram a uma experiência em que o ato de mandar é duro, agressivo, viril. Também nos acostumaram à ideia de que a mulher é boa, compreensiva, receptiva. Daí que, quando uma mulher manda, entremos em curto-circuito. Talvez tenha sido isso o que levou à queda de Nelson Jobim, político hábil e capaz: quem sabe não aceitasse que uma mulher mandasse nele, que por sua vez dava ordens à cúpula das Forças Armadas. A sucessão de declarações aparentemente desastradas de Jobim, praticamente forçando Dilma a exonerá-lo, permite considerar essa explicação tão boa quanto qualquer outra.
A situação tampouco é fácil para as mulheres. Hillary Clinton, quando o marido concorreu à Presidência dos Estados Unidos, teve que reduzir seu perfil de profissional competente e se apresentar como dona de casa que fazia “cookies”. Depois voltou a seu perfil mais verdadeiro, mas parece que nunca presidirá seu país.
Creio, porém, que é justamente esse problema que traz, no seu bojo, a solução. As mulheres assumirem o poder não significa elas se tornarem másculas – imagem que se insinua, às vezes, sobre a própria Dilma. Significa um novo estilo de poder. Não é fortuito que estes anos se fale tanto em “soft power”. Aproveitando a palavra, mas dando-lhe novo sentido, o poder precisa se feminizar. Ele não pode, numa democracia, estar na dureza, na repressão, na ordem. Aliás, depois do hiper-masculino Collor, nossos três últimos presidentes foram mais de persuadir que de ordenar. Sua retórica era mais importante que suas ordens. Essa é uma das tarefas que teremos de cumprir, nós e o mundo, nos próximos anos ou décadas: compreender, definir, construir um poder com mais traços femininos. Isso pode demorar bem mais que o mandato de Dilma Rousseff, mas vai acontecer.
Publicado no Valor Econômico