O fim do ano foi marcado pela atuação política de membros do Judiciário e do Ministério Público para receberem a chamada PAE (Parcela Autônoma de Equivalência), um eufemismo que escamoteia o reconhecimento direto de pagamento de auxílio paletó/moradia para juízes e procuradores.
Insatisfeitos com o recebimento desigual por parte de membros de outros poderes (ministros e deputados federais), o Judiciário e o MP (suas entidades de classe) acharam justo eles também terem acesso a bonança complementar. Ao ser acionado, o Supremo Tribunal Federal “entendeu” – me desculpe por continuar neste processo de prostituição da linguagem – que era um pleito legítimo desde 1999.
O rombo formado pelo “entendimento” foi gigantesco. Só o RN deve a estes funcionários públicos – sim, ainda que não queiram ser chamados como tal, são sim funcionários públicos – R$ 102,5 milhões de reais.
É preciso que se compreenda, para perceber o absurdo da questão – sim, numa democracia, ao contrário do que diz o ditado (pseudo) popular, sentença se discute -, que um ministro e um deputado federal recebem os auxílios em decorrência da atuação fora dos seus estados. É plausível, por exemplo, que um deputado tenha acesso algum tipo de estrutura de moradia, já que está trabalhando em Brasília, ou seja, fora do raio de sua residência oficial. Agora, como justificar o recebimento do benefício por parte de um juiz ou um procurador que mora em Natal e trabalha em Natal? O raciocínio não se encaixa.
Indignados com esta situação, sindicalistas denunciaram o privilegiamento por parte do governo para pagar os débitos para essa parcela do funcionalismo, como diria?!, “bastante sofrida”, em detrimento dos Planos de Cargos Carreiras e Salários das demais categorias. É que, ainda conforme sindicalistas em entrevista para um jornal da cidade, as dívidas do auxílio paletó/moradia não entraram em precatório. Em bom português, “furaram a fila” daqueles que têm alguma coisa a receber do Estado.
Esta sensibilidade, ancorada no entendimento da necessidade urgente do pagamento da PAE, não se deu para o caso da análise das greves das diversas categorias de funcionários públicos do RN. O mesmo judiciário que conseguiu receber o adiantamento sem entrar na fila, foi o que considerou (quase) todas as greves do trabalhadores do Estado ilegais, ainda que os PCCS, resultado de mais de vinte anos de reivindicações, tenham sido descumpridos. Um segundo acordo firmado entre trabalhadores e governo do RN, que prometeu, mas não efetivou, o pagamento dos PCCS para setrembro de 2011, também não amoleceu o coração dos juízes do TJ/RN. Quando acionados, tornaram a considerar as greves ilegais.
Numa sentença que vai entrar para história, um juiz do RN considerou uma greve legal, mas pediu o retorno de 40% dos funcionários, o que na prática acabava com o poder de pressão dos trabalhadores e contraria a própria lei de greve.
A diferença era e continua a ser gritante. Enquanto os sindicatos são recebidos pela segurança do centro administrativo, um membro do TJ/RN, que pleiteava aumento nos recursos do orçamento de 2012 para o judiciário, trata do assunto diretamente com a governadora numa sala com um potente ar condicionado e cafezinho.
E, numa argumentação cínica, os representantes das entidades falam em “legalidade da ação”. Ora, a luta política se processa justamente para tornar legal aquilo que os grupos dominantes, mais próximos dos recursos materiais e simbólicos proporcionados pelo Estado, têm a condição de efetivar enquanto tal. Então, não se trata de juridiquês, mas de ação política.
O governo do RN fez a promessa de pagamento dos PCCS para setembro/2011 e não cumpriu. Ainda que a equipe da governadora não tenha a matemática como o seu forte (fizeram projeção de arrecadação que foi superada com recordes mensais, mas ainda assim disseram que não havia dinheiro para honrar o acordo), há uma nova perspectiva de cumprimento dos Planos para o próximo.
Será que, caso não pague, mais uma vez o TJ/RN considerará as greves ilegais e alicerçadas em “motivos injustificáveis”, como escreveu um juiz em uma de suas sentenças?
PROBLEMA
Jessé Souza, sociólogo brasileiro, nos apresenta bem a questão. O problema do Brasil não é o da corrupção. Ainda que seja uma temática que deve ser enfrentada, ela se torna menor frente às condições de desigualdade que hoje vigoram no país. É que as instituições funcionam apenas para alguns.