Eram dezoito horas de uma caótica quarta-feira em Natal, os motoristas e cobradores de ônibus juntaram-se a outras categorias em greve como os policiais civis, e desde segunda paralisaram a cidade. Havia um clima tenso no ar, tanto no clima chuvoso, quanto na alma dos pacatos cidadãos natalenses. No domingo anterior, uma professora conterrânea após um discurso inflamado na Assembleia Legislativa, discursara no Faustão, no mês anterior, uma campanha disseminada pelo Twitter pareceu vencer o suposto cartel de postos de gasolina, que vendiam em Natal a gasolina mais cara do Nordeste. Talvez seja o simbolismo do mês de maio, talvez o furor advindo da primavera árabe, fato é que pela primeira vez os natalenses estavam reunidos em peso, dispostos a protestar e a fazer ouvir sua voz.
Muitos ainda estavam atônitos, pareciam não acreditar que aquela brincadeira iniciada pelo Twitter com a hashtag #riogrevedonorte fosse de fato alcançar tamanha proporção. Pareciam satisfeitos em colocar no Trend Topic´s Brasil seu grito, mas jamais imaginariam que ele fosse materializar-se nas ruas. Ali estava o grito reprimido de um povo despolitizado, de um estado governado por oligarquias, de um povo que sempre fez da aparência seu modo ser.
De início estavam perdidos, não sabiam o que fazer, se pulavam, gritavam, dançavam. Decidiram por fim andar, cantando a plenos pulmões: “arra, urru, a cidade é nossa”, e de fato era, percorreram as ruas em meio à chuva, sobre os acenos dos moradores nos edifícios que também relutavam em acreditar naquilo tudo, o sentimento de orgulho em viver em uma cidade que despertara de seu sono encantado era compartilhado pelos que caminhavam e os que assistiam.
Fora a mais bela manifestação cívica da cidade, tanto por sua espontaneidade, quanto pela intensidade que aquele momento representava para todos os que estavam ali presentes. Parecia que agora tudo era possível, que uma nova Natal estava nascendo, o sentimento comum era de que todos estavam deixando sua marca na vanguarda dos acontecimentos históricos.
A mídia tradicional da cidade tratou logo de condenar ao ostracismo, tão bela manifestação popular, não os interessava pessoas críticas, politizadas, todas as concessões locais de TV, foram décadas atrás repartidas entre as famílias que ainda hoje dominam a política potiguar. A manutenção do status quo era a única coisa que as interessava. O seu erro de cálculo foi desconsiderar que os natalenses já estavam familiarizados a bastante tempo com as redes sociais, e o silêncio da imprensa tradicional, foi apenas uma tentativa de apagar o fogo com gasolina. Logo, um sentimento de indignação surgiu na rede: isso não poderia ter sido ignorado da forma como foi.
Se as mídias convencionais os ignoravam, dessa vez eles iriam gritar mais alto, e gritaram, reuniram-se aos milhares – mesmo com o boato disseminado por uma pseudo-jornalista de que haveria uma possível briga de torcidas no local. Marcharam em meio à área mais nobre da cidade, mesmo com alguns arruaceiros contratados para arremessar bombas em meio às pessoas. Seguiam em frente, dessa vez ninguém mais poderia ignora-los, iriam fazer ouvir sua indignação, iriam parar a cidade, e pararam. Percorreram as principais vias da cidade, em uma caminhada de quilômetros, motoristas desciam de seus carros e pulava com eles, a euforia estava no ar, a cidade os abraçava, eles eram a cidade.
A mídia já não podia mais ignora-los, algumas emissoras destinaram poucos segundos ao ocorrido, outras – a da prefeita – dedicaram minutos, para desclassifica-los claro. Fato é que dessa vez foram ouvidos, seus gritos ecoaram pela cidade, nas paradas de ônibus, nas conversas de bar, todos comentavam e debatiam sobre os protestos, parecia que agora era um movimento sem volta, Natal jamais seria a mesma.
Entretanto, uma semana depois um novo protesto fora marcado, seu chamado não partira mais da espontaneidade da rede, agora o ato era divulgado massivamente por alguns perfis no Twitter, além de comunidades no Orkut e grupos no Facebook. O motivo do horário escolhido – nove horas da manhã – era uma incógnita para a maioria dos que participaram dos dois atos anteriores. Mas logo se tornou claro…
O resultado foi o esperado, poucas dezenas de pessoas reuniram-se na manhã de uma quarta chuvosa, os poucos que chegavam, desacreditavam do ato e tão logo partiam – até mesmo o carro de som. Mesmo assim, meia-hora após o horário combinado eles partiram, marcharam para a prefeitura onde ganharam mais algumas poucas dezenas de pessoas. Então rumaram a Câmara Municipal, chegando lá, acharam por bem adentrar no prédio, havia na ocasião uma audiência, que fora prontamente interrompida logo após os primeiros gritos de guerra ecoarem pelo vidro que separava os manifestantes dos vereadores.
Difícil acreditar que a decisão de acampar não fora premeditada. Na hora da votação para decidir sobre a realização do acampamento, realizada em plenária no local, havia quatro barracas que já estavam armadas, seja como for, o acampamento fora levantado, um passo que daria ao movimento resultados práticos e um cobiçado espaço na mídia.
Agora com a ocupação o movimento tomou outro rumo, os holofotes da mídia trazem consigo os mais diversos interesses. O que já havia sido verificado com a tentativa da UJS de se apropriar de quase toda imagem do segundo protesto, com grandes faixas, bandeiras e camisetas espalhadas durante toda a manifestação.
A espontaneidade das ruas dera lugar agora à intencionalidade de um setor da sociedade natalense, que além da juventude partidária, era composta também por: estudantes de sociologia, candidaturas de chapas do DCE da UFRN, representantes sindicais, anarquistas, universitários em geral, (cargos-comissionados?). Esse setor julgou que uma aproximação com os movimentos sociais de base, seria adequado para potencializar o movimento. Entretanto, a orientação política do natalense que mora na periferia, curiosamente em zonas negligenciadas pelo poder público, tende a dar respaldo à manutenção da ordem política em nossa cidade, assim, esses natalenses resistiram em aderir ao movimento, que não logrou êxito em atingir a base do “curral” político que sustenta nossos governantes, subestimando talvez as forças que os mantêm. A proposta então passou a ser a de se preparar os setores mais carentes da cidade, para dar respaldo a alguma das candidaturas de oposição na próxima eleição.
Esse foi o ponto crucial que despotencializou o movimento, grande parcela das pessoas que foram as ruas, não se sentiam mais identificadas com o movimento instalado na Câmara, já que não havia uma proposta objetiva para construir uma cidade diferente, criando a impressão de que o movimento seria apenas mais um agente no jogo político, uma extensão da oposição. As pessoas que ainda assim compareciam para acampar, sentiam-se isoladas perante a cumplicidade e a fraternidade que havia entre os grupos que compunham o movimento instalado na Câmara.
Após a desconfiança instaurada com a implantação criminosa de maconha e camisinha nos banheiros da Câmara, gerou-se um clima de desconfiança perante aqueles que fugiam do circulo de amizade dos que lá se encontravam. Quando acampei lá, recebi não menos que seis questionamentos – alguns amistosos, outros nem tanto – de pessoas diferentes sobre quem eu era, e o que fazia.
Assim quando esse movimento saiu de lá (logrando considerável êxito com a conquista da CEI dos Contratos) não obteve mais o amplo respaldo que outrora fora manifestado nas ruas. A saudada horizontalidade do movimento restringia-se a plenárias realizadas no DCE da UFRN, principalmente após a vitória da chapa 01 que marcou esmagadora presença no acampamento – justificada diante do histórico de lutas de seus componentes. A horizontalidade restringia-se agora a um pequeno grupo, evidente que qualquer pessoa poderia comparecer as plenárias, mas o local e a própria dinâmica de longos e repetitivos discursos afastaram as pessoas que poderiam dar ao movimento uma multiplicidade e diversidade tão necessárias para se construir um novo projeto de cidade. Faltou a consciência de que essas pessoas não estavam querendo participar do movimento, mas sim construí-lo.
No início do movimento havia um enorme potencial para se construir um projeto de cidade, entretanto esse potencial foi desperdiçado a partir do momento em que se tentou construir um novo projeto de governo. O sentimento nostálgico de se construir uma Natal melhor fora cooptado por grupos políticos que miravam o próximo governo. Assim o que poderia ser um espaço para se construir propostas para uma cidade melhor deu lugar a uma campanha de desgaste da imagem da prefeita. Entretanto os agentes políticos que promoveram essa mudança, não são os culpados, uma vez que estavam apenas cumprindo sua prerrogativa de apoiar os movimentos sociais e marcar seu espaço no jogo político. Os maiores culpados são as pessoas que participaram dos dois primeiros atos, e se resignaram diante do rumo que o movimento tomou a partir da ocupação da Câmara. Essas pessoas limitaram-se apenas a criticar os que estavam lá, quando na verdade poderiam fazer dos acampados, apenas um pálido reflexo de uma mobilização que não se restringia apenas àquela ocupação, apenas uma consequência de uma mudança muito maior, que transcendia aquele espaço.
Entretanto aquele mesmo sentimento de indignação que pela primeira vez levou milhares de natalenses as ruas, ainda está latente. Ainda espera por uma oportunidade de manifestar-se. Quando isso ocorrer tomara que tenhamos aprendido com os erros.
Talvez o #foramicarla foi apenas o prenúncio de algo maior, um estágio necessário para uma reflexão mais ampla: a de que não adianta uma primavera sem rosa nem borboleta, se continuarmos no inverno das oligarquias.