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Vaquejadas: manifestação cultural ou cultura dos maus-tratos?

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Por Alyson Freire e Daniel Menezes

(Sociólogos e Colunistas da Carta Potiguar)

No senso comum ou na política, evocar ou apelar ao termo “cultura” pode ser conveniente de várias maneiras e atender diversos interesses; desde o desejo de conferir à algo um status distintivo, refinado, culto ou reivindicar a legitimidade de modos de vida, identidades e crenças, uma mãozinha para obter recursos de financiamento do Estado e do mercado e, até mesmo, bloquear certas manifestações e práticas culturais das críticas, questionamentos e avaliações.

Quando então, ao lado do termo “cultura” soma-se a palavra “esporte” a coisa fica ainda mais institucionalizada. Logo, mais difícil de ser questionada e submetida à crítica. É o caso de certos costumes e/ou esportes como caça à coelhos, touradas e, no caso do Brasil, as vaquejadas e rodeios.

Ao contrário de outros animais, somente o homem inflige dor por esporte ou prazer. E o fato de ter consciência da dor causada não diminui nem o faz retroceder em seu ímpeto de crueldade. Nesse sentido, em se tratando de “esportes” ou “tradições culturais” cujo mote se assentam, direta ou parcialmente, na submissão dos animais a maus-tratos e à crueldade, é necessária a regulamentação ou a proibição legal para aplacar o que alguns poderiam pensar ser um “instinto” humano dirigido à violência. Aliás, a própria Constituição Federal (art. 225, § 1º, VII) veda qualquer prática que submeta os animais à crueldade.

Pensando nisto, se deu início um movimento, que já tem algum tempo e que agora age pela internet, que visa colher assinaturas para proibir os maus tratos com os animais infligidos na vaquejada (ver as justificativas http://www.peticaopublica.com.br/?pi=P2011N15526).

A vaquejada é um esporte – pelo menos segundo alguns -, e um lucrativo negócio também, em que dois vaqueiros à cavalo puxam o rabo de um boi para derrubá-lo em um local previamente estabelecido. Nesta competição ou celebração da cultura do cabra-macho, o boi, e muitas vezes, meros bezerros, é um objeto a ser derrotado, entenda-se violentado, pela força e a habilidade das “puxadas” dos vaqueiros, munidos da energia de cavalos velozes e fortes. É um “jogo” desigual: um boi contra dois vaqueiros e dois cavalos.

A vaquejada expõe o animal a inúmeras condições de maus-tratos: o animal encarcerado e submetido a chutes e chicotadas em algumas partes do corpo, inclusive, nos testículos, para que o bicho fique afoito e aumente o grau de dificuldade para os concorrentes. Nesta perspectiva, é impossível não imaginar que não há envolvimento de muito sofrimento ao animal.

O animal é, nesse tipo de prática “esportivo-cultural”, reduzido a mero meio para satisfazer dois propósitos – vaidades – humanos. Um mais particular e outro mais geral. O primeiro, a diversão, o espetáculo. O segundo, mais geral e menos consciente, é atestar a superioridade do homem sobre a natureza e os outros animais. O problemático aqui é que, nesse ritual que é a vaquejada, a diversão é ao custo do sofrimento do animal e a dita superioridade do homem é provada e conquistada pela força, pela capacidade de infligir dor e submissão.

De um modo geral, a vaquejada está, a um só tempo, envolvida num ritual de dominação da natureza sustentado no sofrimento e subjugação do animal, como também pela exaltação do “ser macho nordestino”, da cultura de masculinidade machista que se estende desde as bandas de forró que se apresentam aos demais personagens; vaqueiros, locutores etc..

Para aqueles que defendem a vaquejada, é preciso lembrar que a proibição da vaquejada pode representar um salto civilizatório significativo no tocante as relações homem-natureza em busca de uma racionalidade e modos de relacionamento que não se reduzam à instrumentalidade e à dominação via a violação e  a prova de força. Passo já dado pela Ilhas Canárias e Catalunha, regiões da Espanha que proibiram as famosas touradas em seu país, pondo fim a uma tradição cultural bastante antiga e arraigada.

O argumento de que a vaquejada é uma manifestação cultural não implica aceitar os elementos de violência, crueldade e as condições de sofrimento a que os animais são expostos. Por vezes, a palavra “cultura” ou adjetivo “cultural” encobrem equívocos e violências aos quais se tenta justificar e tornar intocável práticas e hábitos assim qualificados. Por exemplo, práticas de infanticídios e mutilamento genital seriam relativizadas por serem práticas culturais de um determinado povo. Logo, segundo esse raciocínio, qualquer intervenção ou crítica seria um equívoco de indisfarçável etnocentrismo travestido de boas razões humanitárias e civilizatórias. Não se trata apenas de uma concepção congelada e imóvel da cultura, como se esta fosse uma entidade estanque, autoreferente, fechada e incapaz de aprender e redefinir suas crenças, representações e práticas. O problema é também que a ideia – cultura – que deveria constituir a base para desnaturalizar os fenômenos humanos, de que estes são mutáveis, modificáveis e dependem da ação das pessoas, acaba por ser utilizado como discurso que referenda e reforça naturalizações, justificando e perpetuando violências, dominações e desigualdades hierárquicas cuja existência é arbitrária.

O importante, do ponto de vista de uma sociedade democrática madura e reflexiva, é que o fato de certas manifestações, crenças ou práticas constituírem traços de uma cultura particular não sirvam como uma maneira de neutralizar e blindar estas contra questionamentos e interpelações públicas, quer visem tais sua supressão ou ajustamento. A prática da vaquejada precisa ser discutida publicamente quanto aos seus traços e elementos perversos e desnecessariamente violentos.

O homem passou por um processo de pacificação de suas atividades cotidianas e o esporte se estabeleceu como uma das vias para que os agentes produzissem uma economia psíquica dentro de determinadas regras e limites, que viesse a substituir a violência antes praticada. Até os esportes de combate tidos como os mais violentos, como é, por exemplo, o chamado vale-tudo, hoje MMA, apresentam limites objetivos, que visam respeitar a figura da pessoa humana e procurar zelar pela sua integridade.

Ora, esta pacificação deve passar também pelos esportes em que o homem estabelece relação com outros animais. A mudança de viés deve contemplar também o modo como nos relacionamos com a natureza. Não é possível, em pleno século XXI, promover mais um tipo de diversão em que o centro da ação lúdica se estabelece com o sofrimento de um animal.