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Dia do Orgulho Hétero: ode à ignorância e ao rivalismo

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Eis que, na última terça feira, 28, o deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ) enviou à Câmara dos Deputados um Projeto de Lei com a finalidade de instituir no Brasil o Dia do Orgulho Heterossexual. Sob o ardil de resguardar direitos e garantias aos heterossexuais no tocante à manifestação e afirmação de seu “estilo de vida”, valores e “preferências”, o referido projeto tenta justificar-se como medida necessária para se evitar o desenvolvimento de um pretenso preconceito contra os héteros, o qual, segundo alguns, já estar a se alastrar pela sociedade em razão das conquistas dos homossexuais e à visibilidade política e midiática obtidas pelos mesmos.

Qual a necessidade de uma Marcha do Orgulho Hétero quando temos, extraoficialmente, por assim dizer, em nosso cotidiano diversas marchas do tal orgulho heterossexual? Pois, o que é uma partida de futebol num estádio senão um evento orgulhosamente hétero, repleto de manifestações machistas e heterocêntricas – vide os xingamentos e provocações entre as torcidas e aos árbitros? Ou o nosso carnaval oficial nos sambódromos cariocas e paulistas, abarrotado de bundas voluptuosas e atravessado por olhares masculinos incontinentes para tamanha abundância de carne? Poderia ainda, por diversão, acrescentar mais uma das corriqueiras marchas e eventos do orgulho hétero em nossa sociedade, talvez a principal até, a saber: A Marcha pra Jesus e outras manifestações evangélicas. Conclui-se, portanto, que já há muitas “Marchas do Orgulho Hétero”, por isso não convém criar mais uma.

É desnecessário dizer que as motivações de tal projeto não residem nas intenções nobres advogadas. Afinal, não há base alguma para se acreditar que os heterossexuais sofram com perseguições, discriminações, violências e danos de toda ordem exclusivamente pelo fato de serem héteros. Por isso, evocam-se outros valores, que não os ligados ao sofrimento e ao preconceito, para assim disfarçar as reais motivações. Por atrás da evocação da liberdade de expressão e da igualdade jazem bastante ressentimento, ignorância e vontade de poder para retomar a normalização ameaçada. Ressentimento – dos setores conservadores -, por verem seus antigos privilégios em expressar ódio e desrespeito sem a conivência e a guarida social e institucional de outrora. Ressentimento, por terem que conceber os não tão antigos e distantes “anormais”, “pervertidos” e “pecadores” como iguais; e seu modo de vida e sexualidade “antinaturais” e “degradantes” reconhecidos como legítimos e dignos tais como os seus.

Os criadores e apoiadores do projeto fundam o referido projeto sobre uma ignorância quanto ao real sentido da Parada Gay e outras manifestações políticas dos homossexuais. Estas últimas, além de serem produto de um histórico de experiência de desrespeito social e de rebaixamento, carregam em si, a partir de uma dinâmica de luta por reconhecimento de direitos dos quais estavam privados – a união civil, por exemplo -, uma força moral indispensável para a evolução institucional e moral da sociedade, no sentido de promover uma maior e verdadeira aceitação e convivência saudável com as diferenças e com a diversidade de identidades e modos de vida. Ora, o sentido de um Dia do Orgulho Hétero é tão somente o rivalismo e o acentuar da discórdia como que se tratasse de uma reação contra os direitos estendidos aos homossexuais, ou seja, não há uma força moral nos termos referidos acima como impulso à mudanças civilizatórias e institucionais, mas ressentimento.

Um importante sociólogo contemporâneo, Axel Honneth, ensina-nos que uma sociedade verdadeiramente justa não se sustenta apenas na igualdade formal e universal de direitos, ou mesmo numa igualdade social e econômica real. Igualmente importante, ou até mais, é a institucionalização e a generalização de práticas, condições e instrumentos que assegurem o reconhecimento da dignidade de todos os indivíduos e das identidades coletivas dos diferentes grupos sociais e modos de vida, de sorte a impedir a experiência social e psicológica do desrespeito, da exclusão social e da degradação da dignidade que lhes privam das condições morais, intersubjetivas e legais para se constituírem como pessoas plenas e reconhecidas em sua própria comunidade. Este é o caso que homossexuais, negros, mulheres, as classes populares e os imigrantes vivem e conhecem de perto, ao contrário dos heterossexuais, dos homens, dos brancos, das classes médias e dos cristãos, pois sua “condição” de heterossexual, homem, branco, classe média e cristão não constituem empecilhos para o seu reconhecimento social e moral perante à sociedade ou para a construção de uma identidade pessoal saudável.

Mais nem tudo no tal projeto é perdido. Curiosamente, e pouco percebido, aliás, há no projeto, de maneira tácita, uma compreensão de que a própria heterossexualidade é uma forma de sexualidade particular, mais uma entre outras. Apesar do discurso do natural e da sexualidade legítima e verdadeira ainda circular pela sociedade, e, vez por outra, ser mobilizado pelo preconceito na desqualificação moral de outras práticas sexuais, a presença tácita de tal compreensão num Projeto de Lei , ou seja, no âmbito institucional, formulado por agentes conservadores, representa um avanço que não deve ser desconsiderado, um sintoma, uma prova da institucionalização e aceitação cultural progressivas das dimensões do reconhecimento recíproco. A luta em favor da diversidade sexual tem produzido resultado até mesmo nas formas como a contraofensiva conservadora expressa e formula sua reação. Isso é um importante avanço.