Da Teia Neuronial – A natureza é muitas vezes um recurso argumentativo para defender um modelo ideal de comportamento humano. A Etologia pode ser fonte para justificar, por exemplo, um dado tipo de conduta sexual e de formação de laços entre as pessoas. Porém, vemos que os comportamentos animais são tão diversos que não é possível basear nosso ideal de comportamento humano numa suposta “natureza” imutável.
Quando não adianta recorrer à “natureza” para defender a tradição familiar cristã (que na verdade é tão diversa e muito mais ideal do que real), recorre-se a argumentos de cunho “sociológico”. Um exemplo, dado na primeira parte deste ensaio, é a defesa do suposto significado “correto” da palavra “casal”.
A tradição para justificar a tradição (argumentos circulares)
Costumamos nos referir a uma dupla composta de homem e mulher (sejam casados, irmãos ou colegas) como um casal, e esta palavra se reveste comumente desse sentido. Porém, olhemos para o passado (real e não idealizado) e para o futuro.
A origem da palavra casal está no latim casalis, que provém do radical casa, que significa “casa” mesmo. Casalis, segundo o Dicionário Houaiss, tem o sentido de “pertencente a uma casa”. Ou seja, em seu sentido etimológico, casal é um conjunto de pessoas que vivem juntas. Qualquer dupla de pessoas morando juntas, sejam uma mulher e um homem, sejam dois homens, sejam duas mulheres, pode ser considerada um casal, sem ferir nenhum suposto sentido consagrado da palavra.
E se olharmos para o futuro, veremos que, mesmo ignorando a etimologia, toda palavra evolui em seus significados. Se casal é uma palavra que costumava se referir a uma dupla de dois sexos, já passou a ter um sentido mais amplo, e já está sendo muito usada para nomear as uniões entre duas mulheres ou entre dois homens. Voltemos ao Houaiss:
2 par formado por macho e fêmea
3.1 marido e mulher
3.2 qualquer par de pessoas cuja relação é amorosa e/ou sexual
4 Derivação: por extensão de sentido.duas coisas iguais; par, parelha
A acepção 3.2 diz tudo, e a 4 acrescenta o detalhe de que duas coisas “iguais” formam um casal, ou seja, dois seres humanos são um casal, independentemente dos sexos. Além disso, os termos “par” e “parelha” aparecem como sinônimos, e são palavras que costumamos usar para nomear duplas de quaisquer coisas.
Entretanto, muitas pessoas, mesmo aceitando a opção de dois indivíduos do mesmo sexo formarem um casal (ou qualquer que seja o nome que queiram usar), são categoricamente contra a adoção de crianças por homossexuais.
Alegam que a criança que vive com dois pais ou duas mães não tem em casa o modelo ideal de família; que ela vai se sentir diferente das outras crianças que têm uma mãe e um pai; que ela não vai ter um modelo de masculinidade (quando tem mães lésbicas) ou de feminilidade (quando tem pais gays); que ela vai ser influenciada em sua sexualidade; que ela corre o risco de ser vítima de pedofilia.
Mas o “modelo ideal de família” é sempre relativo. A começar pelo fato de a noção mesma de família ser uma construção social e não um dado óbvio nem natural. As diversas culturas humanas têm suas formas peculiares de estabelecer consanguinidade, parentesco, casamentos, alianças e afiliações.
Existem famílias consideradas apenas no nível nuclear (como é, relativamente, o caso dos casais com filhos nas sociedades ocidentais urbanas), enquanto outras nomeiam como família agrupamentos mais amplos, que incluem tios, primos e sobrinhos (muitas comunidades rurais no Brasil representam a si mesmas como “uma família só”).
Em muitas sociedades “simples”, como várias culturas indígenas brasileiras e tantas outras sociedades tribais mundo afora, usa-se o termo equivalente a “mãe” para designar todos as tias, bem como se nomeiam “pais” todos os tios, enquanto toda a geração seguinte é referida como “filhos” e “filhas”.
Porém, é claro que estamos falando de outras sociedades que não a “nossa”. Em “nossa sociedade”, a família é composta de pai, mãe e filhos. Se o casal não é heterossexual, se não planeja ter filhos ou se é promíscuo, afasta-se muito daquilo que se entende como “família”. Isso serve de argumento para a insistência do discurso conservador em negar o direito dos casais homossexuais constituírem família e formarem casais.
Como vimos na primeira parte deste ensaio, as famílias humanas são diversas. E, mesmo em nossa sociedade, a noção de família, parentesco e aliança sempre mudou ao longo da história. Os ideais e as práticas estruturam condutas que são tidas pela sociedade como naturais e universais (o que também constitui uma representação etnocêntrica da humanidade) e relegam à condição de exclusão ou de sub-humanidade toda a diversidade real, que é ela mesma também estruturada nas práticas humanas.
Por isso, a forma como se constituem as uniões de pessoas na atualidade, mesmo no âmbito de uma sociedade como a brasileira, são muito variadas e estão muito longe de seguir à risca um modelo. Há famílias de mãe sem marido (por escolha ou não), de pai sem esposa, de progenitores separados, de homens que se casam e adotam uma criança, de mulheres que fazem o mesmo, de crianças criadas por avós ou tios, de trios de parceiros e até de uniões que não têm nenhum traço de consanguinidade.
É inprofícuo e irrelevante se preocupar com uma suposta inadequação das crianças que são criadas por dois pais do mesmo sexo. Costuma-se argumentar que essa inadequação é inevitável, pois na família e na escola ainda se veicula o mesmo ideal de família. O que é até verdade, mas esse argumento acaba chegando a uma conclusão que reforça a mesma tradição, e ninguém se propõe a mudar essa concepção e ensinar aos mais novos que as formas de as pessoas se relacionarem são muito diversas. Acaba-se construindo um argumento circular, em que a tradição justifica a importância da tradição.
Tanta diversidade nas relações familiares não leva à ausência de modelos (masculinos ou femininos, divisão que é em si mesma arbitrária), pois é uma ilusão achar que a influência dos pais sobre os filhos é a única relevante. A Psicanálise moderna mostra que as figuras paterna e materna não estão necessariamente ligadas ao pai e à mãe, respectivamente. Cada um dos pais pode carregar aspectos dos dois polos da dualidade.
Além disso, há muitas outras pessoas ao redor da criança que servem de modelos de comportamento, e a falta de um pai ou de uma mãe em casa não significa de modo algum uma falta (a não ser para mães e pais solteiros que precisam cuidar sozinhos de seus filhos).
Mas ainda há o medo de que uma criança com pais ou mães homossexuais seja influenciada pelo comportamento sexual dos pais. Isso já foi muito discutido e sabemos que a porcentagem de heterossexuais versus homossexuais é a mesma, independentemente da sexualidade dos pais. Se essa influência fosse tão significativa, não haveria tantos homossexuais filhos de casais hétero.
Ainda assim, sempre há o medo de que os homossexuais queiram adotar crianças para satisfazer seus desejos pedofílicos. Mas a homossexualidade está tão próxima da pedofilia quanto a heterossexualidade. Sabemos quão comum é o abuso sexual dos filhos de pais heterossexuais, quantas meninas que ficam grávidas do pai, sem falar das violências de outros tipos praticados por pessoas severas que batem e espancam as próprias crias. Um pesquisa nos EUA mostrou que a imensa maioria dos casos de pedofilia é cometida por heterossexuais.
Mas é perfeitamente plausível que o discurso conservador defenda que esse comportamento pedofílico de heterossexuais é mais aceitável do que o de homossexuais, tendo em vista o costume arraigado de velar os abusos dentro das famílias tradicionais. O medo de que um homossexual abuse de um filho é, provavelmente, muito mais o medo de que a criança se torne homossexual, pois, por mais que tente argumentar pela lógica, esse discurso se baseia sempre na irredutível e pré-concebida homofobia.
Fontes das imagens
- Trecho de um quadrinho de Bórgia, HQ de Alejandro Jodorowsky e Milo Manara – Conrad Editora
- Lesbian parents better than single moms? – Jane meets Jane