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A orgia humana – parte 1

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Da Teia Neuronial – Diante das mudanças na aceitação das uniões homoafetivas e das demandas cada vez mais fortes por direitos e combate ao preconceito, o discurso reacionário reage como pode. “Dois homens morando juntos não são um casal. Dupla pode ser, mas casal é só homem e mulher. Eu até respeito a opção de dois homens conquistarem a união civil, mas é um crime eles adotarem uma criança”.

Muitas vezes esse discurso se acompanha de frases do tipo: “Isso é uma afronta contra Deus”. De certo modo, equivale a dizer que a homossexualidade é antinatural, ou seja, vai de encontro aos ditames da natureza. Dentro dessa perspectiva, parte-se do pressuposto de que a pessoa que se relaciona com um parceiro do mesmo sexo escolhe sua orientação sexual, escolhe “pecar”, e poderia facilmente seguir o caminho “natural”, se quisesse.

A natureza para justificar a tradição (argumentos quase lógicos)

Recorrer à “natureza” é uma das formas de argumentar no sentido de defender as tradições. Mas esse recurso é muito falho, se estivermos dispostos a um olhar científico e crítico sobre a realidade humana.

Um dos contra-argumentos preferidos daqueles que defendem a liberdade de orientação sexual é o de que há muitos animais que formam pares do mesmo sexo e que até copulam. Este argumento é importante para desmitificar a crença de que os animais bissexuados sempre só copulam heterossexualmente e sempre só formam casais heterossexuais.

Leões homossexuais
Alguns leões machos formam parcerias que incluem a prática do sexo

Dessa forma, não adianta recorrer a supostos comportamentos “naturais”, já que muitas espécies servem de contraexemplos à ideia de que o “normal” é a heterossexualidade. Além disso, a masturbação, também condenada pelos guardiães da tradição, é uma prática comum em todo o reino animal. Porém, pode-se considerar que, não obstante o comportamento de espécies não-humanas, o Homo sapiens tem seu próprio comportamento sexual, que não pode ser reduzido a outros exemplos específicos.

Bonobos
Bonobos têm uma sexualidade parecida com a humana

Um possível sinal de que o ser humano é “suscetível” a comportamentos sexuais variados são os grandes antropoides, especialmente os bonobos (também conhecidos como chimpanzés-pigmeus). Estes não fazem sexo apenas para procriar (e quando o fazem, normalmente assumem a posição “papai-mamãe”, que costuma ser pensada pelos ocidentais como o modelo para os humanos). Não há entre eles tabus em relação à idade, sexo ou parentesco na prática sexual, que pode ocorrer grupalmente (como numa orgia) e serve para apaziguar os ânimos em conflitos dentro dos grupos.

Entretanto, mesmo com a proximidade genética com os humanos, os chimpanzés, gorilas e bonobos são espécies diferentes da nossa. Mas há outros elementos a ser considerados, especialmente no âmbito estritamente antropológico da questão.

É consenso entre os cientistas sociais a não-determinação genética dos comportamentos humanos. Os costumes, hábitos e culturas humanas são resultado muito mais da história, do aprendizado e da tradição do que dos genes e dos instintos.

Tanto é assim que, ao longo da história, as diversas culturas humanas adotaram diferentes formas de estabelecer suas relações interpessoais. Existem povos endogâmicos e exogâmicos, monogâmico, bigâmicos e poligâmicos. Cada povo considera que sua conduta é a natural, e não podemos considerar que o nosso modo de estabelecer o casamento é o que reflete com mais proximidade os “ditames da natureza”, pois ele é fruto da cultura.

Mesmo assim, quando se trata de considerar a saúde, o bem-estar e a formação das crianças, o discurso reacionário pode desconsiderar toda essa argumentação, alegando que a formação de um casal tem como objetivo básico a procriação, e dessa forma o “natural” é que um homem e uma mulher se unam para ter filhos e viver juntos.

Todavia, se recorrermos novamente aos animais não-humanos, veremos que muitas vezes a procriação não coincide com a formação de casais. Os babuínos, por exemplo, são poligâmicos, um macho insemina todo um harém de fêmeas, ficando outros babuínos machos excluídos do ciclo procriativo. Há espécies, como as tartarugas marinhas, que copulam apenas para procriar, e os progenitores de uma ninhada se separam e talvez não voltem a se encontrar nunca mais.

Harém de babuínos
Harém de babuínos

Mas se for necessário recorrer à Antropologia, vemos que nem sempre o casal progenitor corresponde ao casal paterno. Nas Ilhas Trobriand, cuja cultura foi estudada por Bronislaw Malinowksi, o homem que procria não tem a mesma responsabilidade que a mulher com quem concebeu. Os verdadeiros pais da criança são a mulher que a concebeu e o irmão desta.

Entre os mosos (também conhecidos como na), uma etnia chinesa, não existe nem mesmo o papel de marido. O progenitor, para eles, não tem nada a ver com a criança gerada, e todos os pequenos são criados coletivamente. A única figura de autoridade paterna reconhecida é o irmão da mãe, como acontece entre os trobriandeses.

Apesar de tudo, a mentalidade tradicionalista e conservadora cristã pode argumentar que toda essa variedade no mundo animal e nas culturas humanas não corresponde ao que Deus planejou para a humanidade, sendo o “correto” aquilo que está preconizado nos ensinamentos bíblicos e na tradição ocidental cristã.

Mas o deus cristão é só um de tantos milhares inventados pelos seres humanos, e a Bíblia é só um entre tantos livros produzidos durante a longa e curta história humana, e está repleto de contradições quanto à preconização das relações humanas, a mais notável sendo a oposição entre relações poligâmicas no Velho Testamento e as monogâmicas no Novo. Mesmo assim, não são ditames, são apenas descrições das relações. A tradição monogâmica surgiu independentemente da Bíblia. Os mórmons, por exemplo, que são uma seita cristã, praticam a poligamia.

Se quisermos recorrer à “natureza” para justificar as condutas humanas, temos que admitir que uma imensa lista de comportamentos é perfeitamente aceitável para o Homo sapiens:

  • poligamia (tendo em vista tantas espécies que a praticam),
  • adultério (macacos fêmeas que copulam com machos fora do harém ao qual pertencem),
  • pedofilia (na maioria das espécies animais o sexo começa assim que o indivíduo se torna fértil),
  • divórcio (uma fêmea pode desistir de um macho para ficar com outro, mais forte),
  • sodomia (há tantas espécies cujos machos fazem sexo entre si),
  • fornicação (os animais não praticam ritos de casamento),
  • estupro (muitos machos usam a força para obrigar as fêmeas a copular),
  • incesto (a consanguinidade não é empecilho para a cópula em muitas espécies),
  • masturbação (cavalos costumam fazê-lo),
  • sexo por prazer (os bonobos sendo o exemplo mais proeminente) e
  • promiscuidade (os gatos fazem sexo com vários parceiros, sem formar laços) entre outros.

Nem tudo é eticamente aceitável só porque é natural, nem automaticamente condenável pelo mesmo motivo. As relações humanas se dão com base em acordos entre os indivíduos, e a ética de cada um dita as condutas e a fidelidade para com conceitos como a liberdade (tal qual a liberdade de uma criança não ser estuprada) e para com outras pessoas.

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