“Volteiiiiiiii Recife, foi a saudade que me trouxe pelo braço”, “Olinda, quero cantar-te…”, “Foge, foge mulher maravilha, foge, foge superman…”. Essas foram apenas uma das diversas músicas que puderam ser ouvidas no Carnaval que finalmente resolvi passar, entre Recife e Olinda. Houve coisas que definitivamente odiei, e muitas outras que adorei ter visto de perto! Certamente a “Noite dos tambores silenciosos” está entre elas. Trata-se de um ritual afro de “ordenamento” de uma yalorixá ou de um “babalorixá” (ou no “popular”, pai e mãe de santo). O rito recebe esse nome porque após a apresentação de alguns grupos de Maracatu – um espetáculo à parte – exatamente à meia-noite, todos os tambores são silenciados e há uma louvação aos Orixás. Um ritual bonito e que merece ser visto, a despeito das nossas crenças e desconstruções…
A frase-título deste post foi por mim ouvida de um mestre de Maracatu “de baque virado” – uma das variações existentes. Ele pareceu-me muito feliz em seu protesto. Apesar de não se recusar a participar dos momentos que antecedem o referido ritual, assim como tantos outros grupos, não perdeu a chance de fazer sua declaração. Em tom de desabafo o velho ancião parecia, como dizem no Rio de Janeiro, cansado de tanto “esculacho”. Certamente por vivenciar na pele cotidianamente, junto com tantos outros, as agruras – que não impedem as alegrias – comum as favelas e demais comunidades pobres.
Como se não bastassem os problemas cotidianos, econômicos, históricos, sociais e culturalmente constituídos, têm de vivenciar a confusa relação entre serem cotidianamente estigmatizadas e inviabilizadas em sua pobreza e problemas sociais daí advindos, e a folclorização que os hipervibiliza em períodos de festas. O Estado os convida a se apresentar ao longo de todo o Carnaval e em alguns outros poucos períodos festivos do ano. Este é o mesmo que colabora para que sejam simbolicamente isolados, ainda que garantindo precariamente – quando cumpre com isto – a segurança pública dessas populações. O pouco policiamento é inversamente proporcional à hostilidade com que os representantes do “monopólio da força” por parte do Estado, nossos distintos e bem treinados policiais militares tratam as classes mais pobres.
Tais grupos, vivenciam aquilo que nos EUA ficou conhecido como breakwindow, nome pelo qual ganhou fama a política do “tolerância zero”, inicialmente em New York, mas que vem sendo importado para outras partes do mundo. E que o “Pacto pela Vida”, nova política para o policiamento em Pernambuco, parece tomar como exemplo.
Evidentemente não se trata de negar a importância do aumento do policiamento. Neste sentido, não há como ignorar o fato de que em Recife, como em todo estado de Pernambuco, os índices de criminalidade realmente parecem ter caído consideravelmente. Alguns chegam a dizer que a capital pernambucana saiu do primeiro lugar do ranking de crimes para o quinto. Mas fica a pergunta: a custo de que alcançam-se esses felizes índices?
Realidade semelhante pode ser percebida ao conhecer-se um pouco mais de perto a realidade dos diversos grupos de “negros do Rosário” em nosso estado. Se o caríssimo leitor se pegar pensando: “o que diabo são os negros do rosário”, não se martirize. Caso o faça, saiba que nos faltam conterrâneos com a mesma falta de conhecimento. Só espero que você não faça parte daquele grupo que dirá: “E existem negros no RN?”. Pois bem, existem, e não são poucos, e podem ser encontrados em toda a grande Natal e ainda mais facilmente para outras regiões, como o Seridó. Região esta que costuma se gabar constantemente de seus louros, herdeiros dos fenótipos holandeses.
Negros do Rosário, são grupos que dançam ritmos ao som de caixas e outros tipos de percussões – apenas os homens dançam e tocam. Além destes existem personagens que remetem a um mítico e glorioso passado africano: rei e rainha perpétuo; rei e rainha anual; tesoureiros, dentre outros. Aqueles que dançam, dançam portando lanças, remetendo aos negros guerreiros. Em nosso estado é mais comum vermos as apresentações desses grupos durante a Festa de Sant’Ana em Caicó, quando grupos de homens negros, em sua maioria moradores do bairro João XXIII, uma favela abandonada pela autoridades responsáveis. Eles se apresentam em uma das noites na frente da Igreja de Sant’Ana. Outro desses grupos pode ser encontrado em Parelhas, mais especificamente na Boa Vista dos Negros. Esta comunidade residente há alguns séculos na área rural da cidade vem pleiteando há alguns anos a posse das terras onde habitam, enquanto remanescentes quilombolas. O Negros do Rosário de lá costumam se encontrar com outro grupo-irmão anualmente na cidade de Jardim do Seridó, ficando hospedados na “Casa da Irmandade do Rosário”. Durante alguns dias os grupos se apresentam pela cidade e recebem de parte da população alimentos e bebidas.
Fica a pergunta: o que esses grupos têm em comum com os Maracatus pernambucanos? Bem, fora a forte identidade étnica que os une enquanto grupos, também vivenciam uma realidade de descaso estatal e igual cinismo das autoridades públicas, que de acordo com sua conveniência e interesses em maquiar a relação com esses grupos, buscam-nos em datas festivas e outros poucos eventos “oficiais”, tentando fragilmente apresentar uma imagem “para turista ver”, que parece convencer alguns da ridícula ideia de que vivemos em uma democracia racial.
A realidade cotidiana da Boa Vista dos Negros, por exemplo, está permeada de miséria, espoliação e descaso. Exemplo disso é o fato de que a maioria dos homens têm de se submeter a trabalhar nas cerâmicas, lidando com aqueles fornos, consequentemente inalando diversos materiais prejudiciais a à sua saúde. Muitos destes anseiam por poder plantar em suas terras – coisas que poucos ali têm a possibilidade de fazer – mas que não contam com incentivos por ? das diversas instâncias do Poder Executivo.
Se em Pernambuco os grupos de Maracatu, assim como outros co-residentes dos bairros, vivenciam a calorosa receptividade dos afáveis policiais, os moradores da Boa Vist, vivenciam um outro quadro de descaso planejado. Apesar das esporádicas visitas de vereadores e prefeitos, que se intensificam, como de costume, nos períodos eleitorais, não possuem iluminação pública, vivendo em um breu a à noite. Não recebem incentivos fiscais para realizarem suas plantações, e por ai aí vai…
Além disso, esses grupos têm, em muitos casos, de conviver com certos estigmas. Tanto os moradores do João XXIII em Caicó, como os da Boa Vista dos Negros em Parelhas, como os negros, moradores de favelas e periferias em Jardim do Seridó, convivem com certos discursos depreciatórios, em geral advindos de outros moradores desses municípios. São vistos como bêbados, vagabundos, analfabetos, enfim, “gentinha”, a “ralé” como chama o sociólogo Jesse Souza e a equipe de pesquisadores que coordena.
Em Parelhas, durante o trabalho de campo do qual participei, não era incomum que muitos moradores nem soubessem da existência dos “negros” ou que soubessem apenas “de ouvir falar”. Mesmo entre aqueles que moravam na sede do município a segregação eram enorme: até bem pouco tempo era bastante comum uma suposta divisão de classe em duas praças da cidade. De um lado, contavam alguns conhecidos em tom de piada, ficava a “high society”, do outro lado ficava o “povão”.
Retomando a questão do estigma infligido sobre esses grupos, é curioso observar que de fato o índice de alcoolismo ali parecia bem alto, assim como o fato de compartilharem de uma realidade de desemprego estrutural e de alto índice de analfabetismo. Então, pode-se pensar, os estigmas não estão errados. “Esses negos são um bando de vagabundo, mesmo!”. Uma análise superficial, de mau gosto e sem duvidas dúvidas preconceituosa, pode pensar isso, e parar por ai aí mesmo. No entanto, cabe lembrar que é bastante comum que grupos que detém o poder legitimado socialmente, os “estabelecidos” segundo o sociólogo Norbert Elias, buscam apontar as incapacidades dos grupos que vivem a à margem do comportamento e costumes considerados “mais civilizados”, também chamados de outsiders pelo mesmo teórico. No entanto, ao mesmo tempo em que apontam isto, também constroem barreiras simbólicas para que esses grupos não as transponham.
Qual o resultado disso? Naturalização de desigualdades socialmente construídas e culturalmente justificadas, tanto entre os grupos dominantes e os dominados. Estes, em muitos casos, mesmo que reclamem e não deixem de ver e sentir os efeitos da invisibilização social que lhes é imposta , não conseguem, em muitos casos, construir estratégias para desconstruir com isso. Seria necessário, além da indispensável mudança nas ações estatais, passando a expressar mais vontade política na construção de soluções e tratamento mais igualitário, permitindo um real exercício cidadão, que esses grupos adquirissem uma análise crítica sobre seu entorno social, deixando de entregar sua sorte estritamente ao divino ou ao destino. Isto somado a um sentimento de pertença que os uma ao redor de objetivos comuns, poderia dar início a uma virada de mesa, não enquanto uma dominação às avessas, mas na busca de tratamento mais dignificante.
Evidentemente isto leva tempo para mudar tanta coisa, tendo em vista que o atual cenário se construiu ao longo de séculos. Mas é exatamente isto que deve permitir a esperança de mudança: o fato de que este cenário não tem nada de natural, foi construído, podendo assim ser modificado.
Que o aplauso de hoje não seja a véspera do “baculejo” injustificado do amanhã…