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Avatar [Resenha – Parte 2]

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ou Questões antropológicas em Alfa Centauro

O filme Avatar (2009), de James Cameron, apesar de sua trama simples e previsível, apresenta muitos temas relevantes para a humanidade do século XXI. Com uma montagem de cenas perfeita e imagens arrebatadoramente belas e envolventes, consegue sensibilizar para muitas questões pertinentes.

Na primeira parte desta resenha, fiz uma sinopse comentada e uma análise dos nomes de lugares e personagens da trama. Nesta segunda parte, discorrerei sobre temas antropológicos: observação participante, choque cultural, etnocentrismo, relativismo, imperialismo; e, imiscuídas nestes tópicos, questões filosóficas: ética e universalismo.

Avatar (2009)

 

Spoilers: Esta resenha contém revelações sobre a obra. Se você ainda não a viu e não quer estragar a surpresa, pare agora a leitura.

Choque cultural

Avatar é uma história de choque cultural. Extrapandorianos, humanos, com tecnologia superavançada pousam no mundo dos na’vi e começam um trabalho de exploração capitalista que vai ao encontro do modo de vida dos nativos. Os alienígenas terráqueos consideram importante para os na’vi aprender a língua da Terra (o inglês) e ter acesso a novíssimas e complexas tecnologias que mudarão suas vidas. É a velha anedota do colonizador que traz bugigangas para os índios em troca de pau-brasil e ouro.

Trama 4
Montagem 5
Atuação 3
Diálogo 3
Visual 5
Trilha sonora 4
Reflexão 4

Mas os nativos não precisam de nada que os humanos oferecem. Porém, estes estão ávidos por três coisas: a riqueza material que poderiam extrair do unobtânio, minério caríssimo (Parker Selfridge e sua equipe); a oportunidade belicosa de viver uma batalha (Miles Quaritch e seu batalhão); e a oportunidade científica de descobrir novas realidades geológicas, botânicas, zoológicas e antropológicas. Apenas esta última se justifica racionalmente.

They missed the point, of course. A motivação de um homem que cai ali de paraquedas, o paraplégico Jake Sully, é retomar suas pernas e viver uma aventura. O resultado é que ele conseguiu algo muito mais valioso do que dinheiro, adrenalina guerreira ou descobertas científicas. Ele descobre a importância do equilíbrio natural do universo, através de sua iniciação na sociedade dos na’vi do clã Omaticaya.

Observação participante

Bronislaw Malinowski, antropólogo inglês, com ilhéus das Ilhas Trobriand, em 1918.
Bronislaw Malinowski, antropólogo inglês, com ilhéus das Ilhas Trobriand, em 1918.

Antes de tudo, e repetirei isso adiante, Jake Sully não empreendeu a observação participante propriamente dita, ou seja, o método científico desenvolvido pelo antropólogo Bronislaw Malinowski em seus estudos etnográficos nas Ilhas Trobriand. Ele não usou uma abordagem científica nem estava preocupado com elaborar teorias a respeito da vida dos na’vi. Afinal, ele não era cientista, era um “bebê”.

No entanto (relevando a impossibilidade de se tornar um nativo em qualquer cultura diferente daquela que nos criou desde criança até a idade adulta em apenas 3 meses), podemos ver a experiência de Jake como uma ilustração de como se dá a observação participante, essa que é talvez uma das mais sofisticadas metodologias na Antropologia.

O pouco tempo que Jake leva para se iniciar na vida dos na’vi poderia se justificar (em parte) pelo fato de que terráqueos e pandorianos já tinham bastante experiência uns com os outros, o que não é mostrado no filme. A história começa com uma tentativa de retomada de contato, ou seja, cada uma das duas culturas já sabe bastante sobre a outra. Neste sentido, penso que foi uma perda grande não ter explorado mais o choque cultural, metaforizando as reais dificuldades advindas de um encontro entre alienígenas que nunca haviam ouvido falar uns dos outros (o que a série Jornada nas Estrelas: A Nova Geração faz bem melhor).

Repetindo, Jake não é antropólogo e não empreende a observação participante malinowskiana. Mas ele entra no clã dos omaticaya de coração e cabeça vazios, o que permite que ele se abra à completa experiência de se mover pelas árvores com agilidade, domar montarias, dominar o arco e flecha e sentir-se conectado à natureza como qualquer na’vi.

Por ser um “bebê” para Neytiri, Jake começa do zero sua imersão. Como nenhum outro cientista conseguiu, por terem as cabeças cheias de expectativas, o ex-fuzileiro está pronto para começar uma nova vida, e somente incorporando a identidade e os costumes na’vi ele consegue entender a mentalidade, a vida e os anseios do outro. Pode-se dizer que ele realizou uma observação participante visceral e não-etnográafica.

Antropologia imperialista

Os maiores desenvolvimentos da Antropologia se deram, paradoxalmente, em situações neocolonialistas. A Grã-Bretanha enviou Malinowski às Ilhas Trobriand porque estas eram colônia inglesa, e conhecer melhor os nativos era importante para uma melhor administração.

Uma crítica que li algures à história de Avatar foi que o escolhido para salvar os nativos era um “civilizado”, ou seja, um humano branco norte-americano, e isso seria propaganda ideológica norte-americana, mostrando quão virtuoso é o povo salvador do mundo. Porém, lembremo-nos que esses norte-americanos do filme são na maioria favoráveis à exploração dos na’vi e de Pandora.

Além disso, Jake deixa aos poucos de ser humano e incorpora a identidade na’vi, tanto que a vida em seu corpo paraplégico passa a ser um sonho ruim e a vida com os na’vi vai se tornando cada vez mais real. Ele realmente renasce como na’vi, e a única coisa que lhe permite ajudar seus novos irmãos é seu conhecimento profundo do inimigo e uma audácia que ele deve mais ao seu temperamento individual e a sua história particular do que ao fato de ser humano branco norte-americano.

Depois de audaciosamente domar um Toruk (”última sombra”, uma espécie de ave extremamente feroz que apenas 5 na’vi conseguiram cavalgar na história dos omaticaya) a nobreza de Jake finalmente se manifesta no ato humilde de oferecer ajuda ao novo chefe do clã, Tsu’tey (que herdou o posto de Eytucan, recém-morto pelos humanos), seu ex-rival, sem clamar para si nenhum posto importante, mesmo sabendo que, ao se tornar Toruk Macto (”cavaleiro da última sombra”), será respeitado por todos os na’vi.

Guerra preventiva ou Pax Romana

A guerra é muitas vezes (irracionalmente) justificada por motivos preventivos, especialmente em situações imperialistas. O que está por trás é na verdade um interesse escuso, normalmente garantir uma posição dominante na relação com o outro.

Foi o que empreendeu o Império Romano com a chamada Pax Romana. Foi o que repetiu o império norte-americano na Guerra do Iraque. E há uma claríssima referência, em Avatar, à política beligerante de George “Warrior” Bush, quando o coronel Miles Quaritch brada que “vamos combater o terror com terror”.

Júlio César, imperador de SPQR; George "Warrior" Bush, presidente dos EUA; Miles Quaritch, coronel da RDA. "Si vis pacem para bellum" é a ideologia belicista.
Júlio César, imperador de SPQR; George “Warrior” Bush, presidente dos EUA; Miles Quaritch, coronel da RDA. “Si vis pacem para bellum” é a ideologia belicista.

O conhecimento sobre os na’vi tinha o único objetivo de melhor explorar sua lua-natal. Essa abordagem se assemelha muito ao conhecimento do Oriente elaborado pelas nações imperialistas ocidentais. Esse conjunto de saberes, que incluíam vários preconceitos, generalizações e menosprezo, foi chamado por Edward W. Said de Orientalismo e servia de justificativa (irracional) para a dominação.

Esse tipo de atitude preconceituosa é visto durante todo o filme em afirmações que representam os na’vi como animalescos, primitivos, ignorantes, drogados. A conexão bioquímica entre a fauna e flora de Pandora, explicada por Grace Augustine, é ridicularizada por Parker Selfridge: “o que diabos vocês andaram fumando lá embaixo?”

Os exploradores não se permitem a experiência de aprender a cultura local e tirar algum proveito nobre e evolutivo. Talvez a troca tivesse se efetivado se os humanos mostrassem boa vontade de compartilhar uma experiência e não insistissem que são só eles quem têm o que oferecer aos nativos, sendo o unobtânio a moeda e o preço pelo “progresso” trazido da Terra (que, pelo que consta em algumas falas do filme, está com seus recursos naturais esgotados).

A subestimação do “selvagem”

Ewoks

O colunista Jorge Coli, da Folha de S. Paulo, escreveu uma resenha interessante sobre Avatar, na qual ele faz uma referência a Os Sertões, de Euclides da Cunha. Durante os preparativos de um ataque aos revoltosos liderados por Antônio Conselheiro, o coronel Moreira César afirmou: “Vamos almoçar em Canudos”. Ele não esperava que seria tão difícil combater os “brutos” sertanejos, da mesma forma que o coronel Miles Quaritch não esperava perder a batalha contra os na’vi, antes da qual afirmara: “vamos jantar em casa”.

Este é um tema comum em épicos, e se trata de um interessante tema antropológico, pois que toca no relativismo cultural. As grandes civilizações levam seu etnocentrismo a uma escala imperial, considerando que aqueles povos não-assimilados e cuja cultura é considerada inferior não têm condições de resistir a uma guerra (pois, pensam os conquistadores, não têm tecnologia tão avançada nem táticas eficazes) nem à assimilação (pois a cultura do conquistador é considerada melhor e mais desejável).

Porém, a Guerra do Vietnã serve de exemplo real para o equívoco imperialista. Os norte-americanos não esperavam que os vietcongues tivessem a capacidade de, em seu próprio território, resistir e ludibriar os inimigos. O exército norte-americano, por exemplo, se surpreendeu com o uso complexo de túneis, que permitiu aos nativos promover ataques surpresa.

Voltando à ficção, em Guerra nas Estrelas: Episódio VI – O Retorno de Jedi, o Império Galáctico se utiliza dos típicos recursos de um governo expansionista, especialmente a violência física. Mas, com sua avançada tecnologia, não consegue vencer a batalha contra os pequeninos ewoks da lua de Endor, com suas lanças de madeira e pedra, fundas e asas-delta de couro.

Exploração dos recursos naturais e o obstáculo humano

O etnocentrismo imperialista está longe de deixar de ser um problema atual. Se tomarmos o exemplo da influência cultural dos EUA em todas as partes do mundo, vemos que uma relação de dominação ainda se mantém, em que se supervaloriza acriticamente tudo o que é produzido pelos gringos e se subestimas os modos de pensar, viver e até de falar dos povos que vivem em sociedades subordinadas.

A arrogância do conquistador (que age hoje mais no âmbito cultural do que no bélico) o faz tomar a liberdade de assumir a liderança da história de povos “menos civilizados”, como se estes não tivessem a capacidade de “descobrir” o melhor caminho para sua evolução e como se a intervenção externa fosse a melhor das bençãos.

Às vezes essas intervenções podem trazer, a longo prazo, melhorias para os conquistados (que restarem). Mas nem sempre, e sempre é ao custo de muitas mortes e de enormes prejuízos para ambos os lados. Especialmente quando se consideram os produtos naturais cultivados para o bem-estar de uma população (e que poderiam servir para toda a humanidade) como mercadorias a entrar no mundo capitalista, para benefício de uns e prejuízo de outros. E é exatamente o que ocorre na corrida pelo unobtânio (Pandora é uma espécie e Eldorado, onde o ouro é substituído pelo unobtânio): para a RDA, os nativos de Pandora são obstáculos e não parceiros.

Apesar disso, é corrente atualmente o ideário que valoriza a diversidade cultural, e que tem origem no Romantismo alemão de Johann Gottfried von Herder (Também uma Filosofia da História para a Formação da Humanidade). Paradoxalmente, esse ideário pode ter efeitos interessantes para o imperialismo cultural, pois pode dificultar a mudança histórica e o intercâmbio cultural ao cristalizar nichos sociais e valorizar a manutenção das tradições (com a ideia de autenticidade, analisada por Charles Taylor em The Ethics of Authenticity).

É esse ideário que permite a aparição de uma história onde a cultura local de um povo tribal é vista como mais importante do que os interesses egoicos de um empreendimento capitalista. Porém, para ser mais real, a trama deveria deixar mais claro que o contato entre humanos e na’vi deveria trazer grandes mudanças para todos os envolvidos, mas o desfecho dá a entender que tudo só pode terminar bem se tudo continuar como era.

[Continua…]

Publicado originalmente em: Teianeuronial