Alipio DeSousa Filho – Cientista social, professor da UFRN
Na mitologia grega, o pântano de Lerna era o lugar onde vivia a hidra, figurada como um animal monstruoso, com corpo de dragão e cabeças de serpente, muitas cabeças, sendo uma delas imortal; cortada, voltava a nascer. Essa criatura da mitologia é a “Hidra de Lerna”. Animal venenoso, vivia nas profundezas do pântano; quando saía, escondia-se nos juncos para atacar suas vítimas. A Hidra de Lerna é ser de um pântano que o alimenta, que o faz viver, mas monstro que, fora do pântano, não espalha senão destruição e morte. Em certas versões do mito, a Hidra de Lerna foi morta por Hércules, mas, em outras versões, nenhuma esperança havia de que um dia algum ser humano a vencesse.
As sociedades nas quais vigoram regimes democráticos têm seus pântanos de Lerna. Deles, algumas vezes, saem monstros. Dos lodaçais de ideias, moralidades e práticas sociais de sociedades democráticas saem hidras, algumas delas mais assustadoras que outras, não sendo o fato, todavia, algo exatamente novo.
Hoje, no Brasil, Bolsonaro surge na cena política como uma Hidra de Lerna, mas ele é daqueles problemas que somente em regimes democráticos aparece. Potencialmente, a sua candidatura representa (por suas ideias, manifestações, práticas etc. e, igualmente, pelas de alguns de seus apoiadores) um conjunto de concepções que, valendo-se do direito da participação política, fere princípio sem o qual a democracia não se realiza, seu próprio direito de participação podendo ser negado sendo tal princípio violado. Qual é esse princípio? A filósofa estadunidense Nancy Fraser chamou “paridade participativa na interação social” e que, para ela, é princípio e norma deontológica central para assegurar a democracia e estabelecer estados de justiça social. Quando examinamos certas falas de Bolsonaro, ainda que não integrem seu programa de governo, o que vemos que ele oferta a certos indivíduos e grupos sociais são concepções e imagens que representam ameaças de quebra da paridade participativa na sociedade brasileira (já, por si, profundamente desigual, e com paridade entre todos fragilmente assegurada em leis), pois o que de sua boca sai (ou saiu) é o rebaixamento de status destes, a negação da dignidade das pessoas que os integram e mesmo a humanidade delas. Entre outros exemplos que aparecem nos discursos de Bolsonaro ou de certos de seus apoiadores, gays, lésbicas, trans, feministas, jovens rebeldes, opositores políticos, usuários de drogas e delinquentes são comumente objeto de comentários desfavoráveis e representações negativas que permitem pensar que são desmerecedores de respeito, estima social, dignidade, solidariedade, direitos.
Nos termos de diversos filósofos que abordam o assunto, entre os quais a própria Fraser, quando temos a promoção de rebaixamento de status, negação de direitos, dignidade e humanidade a pessoas, por quaisquer que sejam as razões, o fato corresponde ao que chamam negação de “reconhecimento”. Ocorre que a negação de reconhecimento torna-se obstrução da participação de todos, como seres humanos e cidadãos, na vida social e pública, em pé de igualdade, e, por isso mesmo, a negação de reconhecimento é negação também da democracia. A negação de reconhecimento corresponde à subtração de qualidade de cidadão e mesmo de ser humano por pertencimento de indivíduos e grupos a culturas, religiões, gêneros, identidades sexuais, identidades étnicas etc., por suposições questionáveis, produzidas por valorações culturais e morais arbitrárias, isto é, convencionais, que se tornam representações negativas, preconceitos, crenças sem fundamento.
Nas concepções sobre reconhecimento, participação social significa mais que tomar parte em eleições, votar, ser escutado; exprime a ideia de todos poderem participar da vida social em condições de igualdade na consideração, respeito, estima, valorização, direitos, mesmo diferenças importantes podendo existir entre os participantes. E, assim, mesmo quando temos o caso de delinquentes, ainda a estes algo de reconhecimento e sua participação não podem ser negados, pois são seres humanos, merecendo reconhecimento dessa condição, suficiente em si mesma para o direito à existência, mesmo com a suspensão momentânea de certos de seus direitos quando sob cumprimento de penas.
Desde Hegel, a questão do reconhecimento do outro (o outro ser humano, a outra pessoa, um outro indivíduo) é compreendida como uma “necessidade vital” para a existência humana. Sem o reconhecimento do outro, o ser de alguém pode ter sua existência ameaçada, vulnerabilizada, o que pode assumir as formas de sofrimento moral, danos psíquicos ou até mesmo a morte. Dezenas de pensadores, filósofos da democracia, repetem incansavelmente a tese hegeliana, cada um à sua maneira, e com variações, mas sempre para afirmar o mesmo pensamento: assegurar as condições da existência do outro exige a prática do reconhecimento autêntico, verdadeiro, positivo, nunca o reconhecimento errôneo ou negativo, e, assim, reconhecimento é reconhecimento do direito de cada um a existir de modo digno, ativo, sem as representações depreciativas, negativas, que promovem inferiorização, rebaixamento de status e da dignidade humana. Tantas já foram as páginas escritas para a afirmação de ideia tão importante, e sem a qual nenhuma democracia é verdadeira! Escreveram sobre o assunto pensadores tão diferentes entre si como, entre outros exemplos, Habermas, Michel Foucault, Charles Taylor, Axel Honneth, Nancy Fraser, Marta Nussbaum, Judith Butler
Mas, pelo que se pode concluir pelas cenas e manifestações de vários partidários de Bolsonaro e dele próprio, eles não querem saber de nada disso. Assim é que, em seus discursos, os termos mais comumente utilizados expressam ideias autoritárias de força, violência, esmagamento, sem menções a leis e sem reconhecimento daqueles que certamente consideram não merecerem existir, o que faz que tenham sido associados ao fascismo. Talvez não cheguem até aí, mas o fato é que, por tudo que dizem, não parecem nutrir reconhecimento (e tampouco disposição para ofertá-lo) àqueles que não sejam os que são tidos por “cidadãos de bem”, que “respeitam a família”, “respeitam a tradição” e coisas do gênero – aqui quando o conservadorismo dá asas à imaginação e a fantasmas…
Forçoso é admitir que, nos pântanos de Lerna das democracias, habitam hidras que, reivindicando o direito de participação assegurado pelos regimes democráticos, simultaneamente, apregoam ideias e comportamentos em si mesmos não democráticos, pois negadores do reconhecimento igualitário para a paritária participação social de todos. Alimentados nos charcos ideológicos (culturais, morais etc.) de valorações depreciativas do outro, por suas diferenças, monstros de muitas cabeças aparecerem para participar dos processos institucionalizados pelos regimes democráticos – e que estes não podem sustar se pretendem manter verdadeiramente a democracia –, mas contrariando os próprios princípios que a democracia também não pode abrir mão. É a democracia envolvida em paradoxos que não pode abolir; somente o faria se sacrificasse o próprio modelo democrático. Sonho de seitas de esquerda e de direita na América Latina, que acreditam que ditaduras são soluções para os paradoxos da democracia (que desprezam!) e nas quais não sabem como agir e nem mesmo enxergam o que nelas fazer.
Todavia, não há e nem haverá democracia se aqueles que são os seus cidadãos não forem aqueles que decidem. Ainda que se saiba que, em política, como em ética, a verdade não está na quantidade, o fato é que, nos regimes democráticos, as decisões são por maioria de votos, seja quando pelo voto direto, seja por representação. A maior parte da população brasileira, no pragmatismo imediatista habitual das populações, está escolhendo para presidente da república (ao menos até aqui, pelo que dizem as pesquisas eleitorais) aquele que promete, sem arrodeios, “acabar com a violência”, “esmagar criminosos”, “acabar com a desonestidade na política”, e que anuncia que sua missão se fará “sob a proteção de Deus”. Não se trata nisso de uma adesão de grande parte da sociedade brasileira ao “fascismo” (como vociferam alguns) nem um ato “contra o sistema democrático” (como vociferam outros). Se é verdadeiro que, sem as massas, hidras de Lerna não teriam vida nem agiriam multiplicando-se, ainda assim suas opções são breves, calculadas e monitoradas. Assim como agora decidem fazer a escolha que vem se confirmando – que mesmo até, assustadoramente, parece apoiada na crença que estarão dando ao provável futuro governante poder de vida e morte sobre todos, como se confundissem os regimes democráticos moderno-contemporâneos com as antigas monarquias ou tiranias –, indiferentemente à decisão anterior, poderão mudar o apoio que agora oferecem ao seu candidato, e logo que se torne o presidente eleito, em razão de quaisquer circunstâncias novas, nas quais a mesma massa de eleitores decida ficar contra aquele que agora unge como um Redentor. Aliás, unção com a qual religiões colaboram, mistificando a hidra, de modo a fazer que o monstro de muitas cabeças pareça o Enviado dos céus para a salvação da sociedade brasileira da danação na qual caiu (a corrupção, a “ideologia de gênero”, o reconhecimento do casamento gay, políticas de promoção de direitos humanos etc.)
Toda a questão, contudo, é que ou somos democráticos e aceitamos as escolhas da maioria (quaisquer que sejam essas escolhas e mesmo que, nelas, estejam embutidas ideias antidemocráticas) ou temos que assumir que não somos democráticos e desejamos, no lugar da democracia, regimes de déspotas esclarecidos, que governarão sem ser eleitos, mas, mesmo assim, governarão com as ideias que queremos – e, supostamente, ideias justas, democráticas etc. Ou aceitamos ditaduras sem déspota nenhum esclarecido, mas falando em nome do “povo”, do “proletariado”, da “revolução”, porém mais não sendo que pura tirania, com seus “líderes” também saídos de outros pântanos de Lerna e suas monstruosidades.
Nas nossas sociedades, porque serão sempre imperfeitas, haverá sempre muito o que fazer. E, para ficar apenas na nossa atual situação frente à escolha do próximo presidente da República, não há razões para entregar-se ao desespero!
Como comecei, terminarei com a mitologia: não foi de um só golpe que Hércules matou a Hidra de Lerna; assim, nem no mito (que, nele, “tudo pode acontecer”, como assim disse Claude Lévi-Strauss), o monstro de muitas cabeças foi morto em um só trabalho. Na vida social, humana, igualmente não temos como enfrentar as hidras dos pântanos da democracia se não assumirmos que nosso trabalho de Hércules é outro: uma educação paciente, longa, trabalhosa, árdua… Temos que produzir uma educação para o autêntico reconhecimento do outro, nas famílias, nas escolas, nas universidades, nos meios de comunicação etc., cuja fantasia deve ser extrapolar a realidade instituída que temos hoje em termos de padrões morais e culturais (socialmente construídos e ideologicamente legitimados) de valoração e produção de significação da realidade, da existência humana, do outro, em desacordo com o reconhecimento igualitário e em desacordo com a vida democrática. Só uma educação para o reconhecimento autêntico, pode produzir antídotos diversos de enfrentamento de hidras que saiam dos pântanos de Lerna que existem em todas as democracias. Educação vantajosa para a democracia porque poderá ser (ela é) capaz de convencer a todos sobre a vantagem que é a vida vivida com a aceitação do outro, em suas diferenças, sem preconceitos, discriminações, subordinações. Quando cada um e todos poderão viver sem o medo, a desconfiança, o temor da negação e do desaparecimento pela ação de quem espera amparo, proteção, estima, solidariedade, sabendo-se que não há existência humana, do nascimento à sepultura, sem a presença do outro em nossas vidas.
Se quisermos enfrentar hidras de muitos tipos e caras que ameaçam a democracia pela negação de reconhecimento, direitos, dignidade, distribuição de bens e direitos, só resta a fazer um trabalho de educação para o reconhecimento do outro (no amplo sentido que isso pode ter, incluindo a ação política de partidos, movimentos sociais e pessoas, no cotidiano, no parlamento, na comunicação), mas o que já é muito e do que não podemos abrir mão, se queremos assegurar a existência de sociedades cada vez mais democráticas. Qualquer outra coisa no lugar, como ideia para impedir que hidras atuem na democracia contra ela própria, pode ser também o caminho mais curto que levará ao fim do modelo democrático, pela via da direita ou da esquerda.
Por fim, como já observou Judith Bulter, filósofa norte-americana: “a fantasia não é o oposto da realidade; é o que a realidade impede de realizar-se […]. A fantasia é o que nos permite imaginar-nos a nós mesmos e a outros de maneira diferente; é o que estabelece o possível excedendo o real; a fantasia aponta a outro lugar e, quando o incorpora, converte em familiar esse outro lugar”. Para a sociedade brasileira, a fantasia democrática mais importante agora é a promoção de uma educação para o reconhecimento igualitário de todos, que comece na infância, como forma de assegurar que teremos uma sociedade com paridade participativa na interação social, esta entendida como participação de todos em todas as esferas da vida político-pública e principalmente participação no acesso a bens e direitos, tornando possível condições igualitárias para a existência de cada um como ser humano. Desde pequenos, devendo todos na sociedade aprender que negar reconhecimento é monstruosidade que se deve evitar. Se já tivéssemos essa educação, talvez hoje não teríamos as hidras que, no nosso país, agora saem dos pântanos onde habitavam, causando horror e repulsa… Bolsonaro não saiu sozinho, acompanho-o outras tantas hidras, daí esse ser mesmo um monstro de muitas cabeças.