20 de Junho – Dia Mundial do Refugiado
Por Andressa Lídicy Morais Lima
(Antropóloga, CRDH/RN e NUECS-DH/UFRN)
Síria, Nazira[1] tem 29 anos, não fala português, é formada em administração, sua família está retalhada, os pais estão mortos, não é casada e não possui filhos. Alguns irmãos são os únicos – com vagas notícias – que ‘ainda’ estão vivos em sua terra de nascimento. Contou-me que em setembro de 2013 deu início a sua fuga, tentando escapar do estado de guerra na Síria, quando saiu de Hama, de carro, com destino a Beirut no Líbano, onde permaneceu durante mais ou menos três meses, se virando como podia, contando apenas com a ajuda humanitária. De lá conseguiu sair em direção a cidade de São Paulo. No Brasil desde o ano passado, sozinha, pediu asilo em sua chegada ao Rio Grande do Norte em dezembro.
Com a ajuda de um tradutor, que lhe tem prestado auxílio desde sua chegada ao Brasil, através de uma rede de solidariedade mulçumana, Nazira compartilhou sua memória individual, mas que é também parte da memória coletiva de outros. Diz que deixou sua terra após ter recebido um recado em sua casa: no recado, a informação de que ela a partir daquele dia, não precisaria ir novamente ao trabalho e caso resolvesse ir, ignorando o conteúdo do recado, seria presa, pois “a polícia estava a sua procura” (Nazira assim como muitos outros cidadãos sírios, havia participado de protestos contra o governo central de seu país). De fato, Nazira foi presa durante uma das manifestações em que participou, mas conseguiu escapar de um caminhão (onde havia outros presos políticos) que a transportava para outra prisão. Durante o período de prisão, Nazira sofreu torturas, teve amigas suas também presas, torturadas e até mesma a morte de uma delas.
Ainda hoje, em muitos países, a exemplo do que ocorre na Síria, as mulheres disputam vagas em universidades, cargos políticos, de emprego e de espaço na esfera pública, desejando participar mais ativamente na construção política de direitos. Nazira, nossa personagem principal aqui, não se considera mais oprimida do que nós, mulheres ocidentais, que somos constantemente reféns do culto ao corpo, da obrigação de se vestir para sermos sex symbol ou, ainda pior, quando realizando a fantasia do sex symbol, sermos estereotipadas com a mesma língua afiada que rebaixa e viola a liberdade de poder ser o que se é.
Hoje refugiada em Natal-RN, diz que recebeu apenas uma parcela no valor de R$ 300,00 (trezentos reais) durante os seis meses que está no país, referente a primeira parte de um beneficio pago em quatro parcelas mensais com recursos da Organização das Nações Unidas – ONU – pela instituição não-governamental Cáritas. Sobre isso causa desconforto, para alguns, mencionar que a Cáritas – instituição ligada a igreja Católica – é responsável pela gerência e repasse desses benefícios, embora outras instituições espalhadas por nosso vasto país estejam trabalhando para acolher refugiados, apenas a Cáritas detém estes fundos, repassados através de convênio pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR.
Evidentemente, Nazira questionou o porquê de não receber as outras parcelas do benefício e chegou a creditar tal deszelo ao fato de sua confissão religiosa mulçumana. De concreto, sem conseguir se comunicar em língua portuguesa, as chances de Nazira se reestabelecer e conseguir um emprego diminuem drasticamente. Sem a intenção de ignorar as particularidades de cada trajeto biográfico, vemos em Nazira o retrato de outras histórias de vida estrangeiras fraturadas.
No Brasil vivem atualmente 5.208 refugiados de mais de oitenta nacionalidades, sendo 34% mulheres. O fluxo desses deslocamentos forçados em todo o mundo chegou a 50 milhões este ano, segundo dados divulgados pela ACNUR, sendo os sírios aqueles que compõem a segunda maior população de refugiados (somente a Síria forçou o deslocamento de 9 milhões de pessoas) enquanto o Afeganistão é o responsável pelo maior número. A Somália ocupa o terceiro lugar nessa lista. Desses três países deriva a maior população de refugiados no mundo. Com efeito, países como Líbano, Paquistão e Irã recebem o maior número de populações refugiadas e estão em constante instabilidade política, em parte devido aos seus vizinhos, como no caso da Síria, em conflito civil há quatro anos. Estima-se que mais de 100 mil pessoas foram mortas desde março de 2011, início das revoltas contra o governo do presidente Bashar al-Assad.
Em contextos de guerra e de deslocamento forçado de pessoas a linguagem, seja nas relações internacionais entre governos, seja nas relações pessoais já estando em países de cultura e línguas distintas, representa um considerável esforço e desafio para comunicação. Entre as principais demandas apresentadas por refugiados está o acesso a formação em língua portuguesa, mas também acesso a serviços básicos de saúde e moradia. A linguagem é o elemento essencial, pré-condição, da possibilidade de uma interação comunicativa, ou melhor, da coetaneidade entre sujeitos. A linguagem é a forma mais simples de que necessitam estas pessoas para se formarem como sujeitos de direitos. Deriva daí seu caráter indispensável para o reconhecimento da diferença.
Podemos naturalmente argumentar que os prejuízos causados pela negação do princípio de dignidade da pessoa humana, efeito da discriminação e da xenofobia, causam lesões psicológicas sobre refugiados. É este o caso, que podemos identificar, por exemplo, no encontro com a extravagância etnocêntrica neste novo lugar. Enxergar o outro sempre de maneira negativa, pode borrar a autocompreensão dele sobre si mesmo. Isto ocorre, em grande medida, porque parte da autocompreensão de quem nós somos é construída na relação com os outros, algo que pragmatistas como Ancelm Strauss e Georg Mead descreveram como momento dialógico da formação da identidade.
Assim, reconhecer a dignidade humana não é uma mera cortesia, mas uma necessidade humana vital e, logo constitui momento fundamental para efetivação dos Direitos Humanos. Significa também compreender que todos podem (e devem) partilhar de culturas distintas desde que princípios morais universalmente válidos sejam respeitados.
Fortalecer e ampliar a rede de atores sociais responsáveis por garantir a proteção dos Direitos Humanos é fundamental, pois reflete a formação de uma disposição coletiva multicultural em que se tenha como horizonte o respeito às diferenças. É relevante para nosso aprendizado moral a difusão do conhecimento que batalhe contra o preconceito, a discriminação, a violência e assim possa promover valores como liberdade, igualdade e justiça à luz do reconhecimento e estima social.
Dessa maneira, a alteridade cosmopolita é importante por produzir o exercício de relativização. Não se trata de uma neutralidade, mas sim de aprender moralmente no encontro intersubjetivo, no sentido de que é possível reconhecer as demandas do outro, e que esse outro recém-chegado e duplamente devassado é legítimo e digno. Portanto, nessa nova configuração em que os fluxos de migrantes e refugiados passam a ser intensificados se faz ainda mais necessário o reconhecimento reciproco numa sociedade que compartilhe efetivamente o valor da sacralidade da pessoa humana.
[1] Nazira significa “em pé de igualdade, vanguarda”, nome de origem mulçumana escolhido para reconstrução de várias histórias de vida de refugiados que não terão seus nomes legítimos divulgados para garantia de seu anonimato. Nazira representa uma comunidade muito mais ampla, sua história é contada como um “tipo ideal” de refugiado.
Contato:
Antropóloga
Centro de Referência em Direitos Humanos CRDH/RN
Núcleo de Estudos Críticos em Subjetividades e Direitos Humanos NUECS-DH/UFRN