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Nem toda nudez será castigada: Cruor e a polêmica do nu

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Corpos nus. Inteiros. Pele à mostra. Movimentos, marcas e listras. Seios, pênis e vaginas. Nudez. Corpo “livre”. Dança. A pele, como diria Paul Valery, é o órgão mais profundo.

Não há nada mais natural e conhecido que o corpo humano, e, ainda assim, nada parece ser mais chocante e incompreendido do que este mesmo corpo quando encontra-se despojado das vestimentas e convenções, estas que são tão pegadas a nós quanto as penas são às aves.

Trote-UFRN1O corpo humano, puro e simplesmente, é o maior e mais recorrente objeto de todos os investimentos simbólicos e políticos do homem e da cultura. Exaltado e idealizado pelas artes há milênios, moralizado por religiões e crenças ascéticas, devassado e escrutinado de fio à pavio pela ciência, o corpo nu curiosamente ainda choca e afronta. As repercussões da apresentação “Corpo Livre” do grupo Cruor de arte contemporânea na lateral do prédio do CCHLA (UFRN) esta semana confirmam essa inusitada, mas verdadeira, afirmação.

Por ocasião da Semana de Antropologia, os integrantes do grupo Cruor realizaram uma intervenção artística na qual o nu em movimento, melodia e ritmo, portanto, a nudez viva e porosa, era o protagonista da cena e da performance. Os sons das flautas e dos batuques entrelaçavam um à um, com fios invisíveis, os corpos nus e abertos dos artistas numa dança cadenciada e mística que transformou o gramado do CCLHA num “jardins das delícias”, em uma quase simulação de uma antiga celebração pagã.

Mas voltemos à polêmica do nu e a incompreensão produzida, uma vez que nela podemos compreender o quão pobre e neurótica é a nossa relação com o corpo. Todo o escândalo criado em torno do nu artístico realizado pelo grupo Cruor não deixa de ser, também, um reflexo do provincianismo de alguns setores médios natalenses, que, ressentidos e reativos, tentam deslegitimar as manifestações mais cosmopolitas e modernas da cidade tentando enquadrá-las em seus parâmetros de gosto tradicionais ou simplesmente em seus preconceitos. Porém, enfatizarei aqui o primeiro ponto, as ambiguidades e as motivações das reações conservadores ao nu.

O nu numa escultura não choca nem enrubesce. Porque uma escultura ou uma estátua não passam de um corpo inerte, sem desejo, nem pulsão, sem fendas nem carne, é talhado para fixar a morte. O mesmo, no entanto, não ocorre com a expressão do nu experimentado nas artes vivas, a dança, o teatro, etc..  Assim como o corpo é mais corpo quando se movimenta, a nudez é mais ela própria quando abre-se e fecha-se em seus detalhes, músculos, cicatrizes. É este tipo de nudez pulsante que atinge, de maneira ambígua, à sociedade, ocasionando desde êxtases estéticos à pânicos morais de repúdio e censura.

No caso da apresentação no CCHLA, muitos ao tomarem conhecimento por meio da imprensa apontaram o dedo acusador e desferiram comentários desqualificadores contra o grupo Cruor e a sua expressão criativa do nu. Como verdadeiros censores do “bom gosto”, aqueles afirmaram, uns mais categoricamente e outros com mais timidez, que aquilo ali não se tratava de “arte”.  Aliás, frisemos, o que seria das vanguardas artísticas se não houvessem os conservadores e sua pretensão de ditar “limites” e “convenções” à expressão estética, não é?

Houve até quem, de um modo equivocada, sensacionalista e tolo, alardeasse que a performance se tratava na verdade de um trote. Para estes vigias do corpo alheio, a nudez ostentada em situações, por assim dizer, inesperadas seria, com efeito, o resultado de alguma imposição violenta, que obrigou a pessoa a se despir de suas roupas – jamais um ato criativo, espontâneo e prenhe de sentidos. Curioso como alguns denunciam como trote “corpos nus” mas silenciam-se quando se trata de um verdadeiro trote, de conteúdo racista, como o praticado na UFMG quando veteranos do curso de Direito pintaram de “negra” uma caloura, acorrentando-a e pendurando em seu pescoço uma plaqueta com o nome “Chica da Silva”. Hipocrisias reveladoras estas, pois a nudez parece incomodar mais do que o racismo, a inferiorização e a afirmação de hierarquias e estigmas.

O corpo vivo, com desejos, pensamentos e fluxos, sempre foi o pesadelo dos conservadores. Fonte de medo e culpa. Por isso, constantemente alvo de normalizações sociais e simbólicas. Para controlar e exorcizar o corpo quantos desatinos não foram inventados!

O corpo nu, que já foi na Grécia antiga, símbolo máximo do sublime e do belo é convertido em perdição da alma no asceticismo cristão. Na mentalidade burguesa , que persiste ainda em algumas mentes, os corpos lúdicos e despidos são tolerados apenas nas crianças. Em todos os demais, a nudez não é outra senão sinal de indisciplinamento ou loucura. Não à toa, o nu somente se mostra como socialmente tolerada em espaços e atividades em que ela está controlada, escondida e domesticada; consultórios médicos, as revistas pornográficas, os sites pornôs, cinema, etc..

Em nossa sociedade, existem aquelas formas de nudez que são admitidas, inclusive estimuladas. Essas de modo algum parecem chocar ou causar estranhamento. A nudez industrializada do corpo como produto de consumo não causa comoção exatamente porque ela se exibe como objeto para o olhar invasivo e apossador do outro enquanto consumidor. Ou seja, a nudez posta numa relação de troca ganha ares de aceitável e tolerável. A reafirmação da dominação e posse sobre o corpo do outro é admitida e aceita em suas formas mercantis e afetivas. Os mesmos que esperneiam horrorizados contra o “atentado ao pudor” promovido pelos artistas do grupo Cruor são os mesmos que “comem”, invadem e despem com os olhos os corpos cobertos das mulheres nas ruas.

Portanto, onde então reside o problema da nudez, pelo menos daquela que suscita repúdio e incompreensão? O que aflige e perturba os espíritos conservadores é esta nudez que ousa se colocar como protagonista, como força viva e afirmativa capaz de provocar mais do que sensações orgânicas e pensamentos sexuais superficiais de subjugação e apossamento. Quer dizer, capaz de suscitar nos corpos vestidos dos espectadores, estranhamento, entusiasmo reflexivo, fervor estético e sentimentos desconcertantes, tal como fez o provocativo grupo do DEART em sua intervenção.

Pela criatividade estética e ousadia política, o grupo Cruor, em sua manifestação, ergueu a nudez à condição de sujeito, portanto, ao mesmo tempo como expressão artística e política. É isto que assusta, porque a nudez assim mostrada desestabiliza hierarquias e à dominação das normas e do regramento cotidiano. É este potencial transgressivo da nudez, capaz de revelar a hipocrisia e arbitrariedade de nossas convenções e o disparate de nossas neuroses o que de fato atemoriza profundamente os desprezadores do corpo.

As artes redimem o corpo envergonhado de si dos moralistas. O corpo nu é rebelião. E, na arte, a nudez jamais será castigada.

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Foto: Thiago Franco