Vários países têm leis que asseguram direitos às pessoas trans, a exemplo de Uruguai, México e Espanha. A legislação argentina, porém, inova porque não exige que a pessoa trans tenha diagnóstico de transtorno de identidade.
Por Berenice Bento
(Socióloga e prof. do Dep. Ciências Sociais – UFRN)
O parlamento argentino aprovou a Lei de Identidade de Gênero, que assegura direitos fundamentais às pessoas trans (transexuais e travestis). Com isso, o país passou a ter a legislação mais avançada do mundo. A lei estabelece: 1) qualquer pessoa poderá solicitar a retificação do sexo no registro civil, incluindo o nome de batismo e a foto de identidade; 2) a mudança de sexo não necessitará mais do aval da Justiça para reconhecimento; e 3) o sistema de saúde deverá incluir operações e tratamentos para a adequação ao gênero escolhido.
Mais: a lei define identidade de gênero como a “vivência interna e individual tal como cada pessoa a sente, que pode corresponder ou não ao sexo determinado no momento do nascimento, incluindo a vivência pessoal do corpo”. Não condiciona as mudanças nos documentos à realização das cirurgias de transgenitalização.
Vários países têm leis que asseguram direitos às pessoas trans, a exemplo de Uruguai, México e Espanha. A legislação argentina, porém, inova porque não exige que a pessoa trans tenha diagnóstico de transtorno de identidade (como é o caso da Espanha) e transforma o processo de alteração dos documentos em simples processo administrativo.
As leis que dispõem sobre direitos das pessoas trans mudam de acordo com a compreensão que o legislador tenha do que seja gênero.
Quanto mais próximo da visão biologizante de gênero, maior serão as exigências para as cirurgias de transgenitalização e as mudanças nos documentos. Por essa visão, ou se nasce homem ou se nasce mulher e nada poderá alterar a predestinação escrita nos hormônios.
Nesses casos, as legislações têm caráter autorizativo. As pessoas trans precisarão de algum especialista para atestar a validade das demandas. Na legislação argentina, prevaleceu o princípio do reconhecimento da identidade de gênero, sem nenhuma referência à condição de doença ou transtorno.
No Brasil, não há nenhuma lei que garanta às pessoas trans o direito a mudar de nome e de sexo nos documentos. O que temos são gambiarras legais: a utilização do nome social. Uma solução à brasileira. Mudar sem alterar substancialmente nada na vida da população mais excluída da cidadania nacional.
Universidades, escolas, ministérios e outras esferas do mundo público aprovam regulamentos que garantem às pessoas trans a utilização do “nome social”. Assim, por exemplo, uma estudante transexual terá o nome feminino na chamada escolar, mas, no mercado de trabalho e em todas as outras dimensões da vida, terá que continuar se submetendo a situações vexatórias e humilhantes.
Diante da paralisia do Legislativo nacional em regulamentar a alteração dos documentos, muitas pessoas trans têm entrado com processos na Justiça e, em alguns casos, têm conseguido vitórias. No entanto, ainda prevalece a tese de que é necessário, primeiro, a realização das cirurgias de transgenitalização e, no segundo momento, é que se poderão demandar juridicamente as alterações nos documentos.
A mais recente proposta de regulamentar as mudanças nos documentos desvinculando-as da cirurgia é da senadora Marta Suplicy. No entanto, a proposta continuará sendo arremedo na vida das pessoas trans, uma vez que exige o laudo de transtorno de identidade de gênero, mantém a concepção patologizante da identidade trans e, por fim, mantém a necessidade do processo na Justiça.
O juiz continuará com poder de decidir se a pessoa trans poderá ou não mudar os documentos. Dessa forma, a proposta da senadora troca seis por meia dúzia e continua operando seus argumentos nos marcos da autorização, não do reconhecimento pleno dos direitos humanos.
Artigo publicado originalmente no jornal Correio Braziliense em 29/5/2012